O colonizante, além de fazer uso de todo o seu aparato estatal-bélico-policial-jurídico para não ser colonizado, não quer, também, permitir que aqueles de quem tanto usurparam, tenham a chance de sobreviver nos moldes da sua economia social e política. Quando o permitem, iniciam uma série de limitações e violências que vão desde o uso da língua nacional para estabelecer o estrangeiro como um outro – e para mantê-lo neste lugar de outro, – até uma continuada perseguição xenófoba que criminaliza os nacionais que proporcionam, a estes “outros”, segurança e bem-estar e que prende, expulsa, escraviza e enxerga a morte do estrangeiro como uma consequência direta da necessária segurança nacional.
Esta realidade foi, em parte, satisfeita pelos “[…]estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo de classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos racistas, acabou comparando as classes trabalhadoras e o ‘o povo apátrida’ do mundo industrial aos ‘selvagens’ do mundo colonial.”1
Em que pese a distância espaço-tempo, com a advento da modernidade, tenha se reconfigurado e diminuído, “[…]os Estados europeus nunca visaram governar territórios coloniais com a mesma uniformidade e intensidade como foi aplicada a suas próprias populações.”2
Não apenas a fome, como também as guerras civis, os graves contrastes econômicos e sociais, a exploração desmedida e continuada da natureza e de povos, a acumulação de riquezas consequente do sistema capitalista de produção e a ampla multiplicação das riquezas de capital financeiro, que é proveniente do neoliberalismo, são causas diretas para uma crescente e incontrolável migração de seres humanos que buscam por refúgio e melhores condições de vida, em países que se apresentam como dominantes do cenário econômico e produtivo internacional.
Muitos destes países se encontram presentes no continente europeu; seja em razão do seu histórico colonizador e de usurpador das riquezas de continentes e países que lhes são alheios, seja em razão da contínua exploração econômica, natural e humana de países e localidades outrora colonizados e que carregam as marcas, os signos e o ranço colonizante em sua história e origem, à luz da modernidade ocidental e da história que foi por ela criada e contada.
O cerne é que, “migrações em massa geram um processo de desterritorialização e reterritorialização que tem forte influência sobre as identidades de todos os envolvidos, tanto dos imigrantes quanto dos os recebem”3 e que “a Europa, em especial, é uma dessas regiões, e temos testemunhado com muita frequência os conflitos envolvendo multidões de refugiados e migrantes tentando entrar naquele continente.”4
Muitos desses conflitos decorrem da atual formação da estrutura internacional dos Estados-nações como integrantes de uma grande comunidade macroeconômica, capitalista e neoliberal; que acaba por conformar o paradoxo da necessária extinção de fronteiras para a ascensão econômica e exploratória, em contraposição a uma demarcação, delas, cada vez mais resistente ao acolhimento de imigrantes. Tal resistência está gerando uma verdadeira legião de seres humanos entendidos como “pessoa sem estado, que são destituídas e restringidas por operações jurídicas e militares do poder de estado.”5
A própria conformação jurídica-social-política do sujeito sem estado, carrega em si, também, um grande paradoxo, tendo em vista que, ainda que em face dos imigrantes ilegais lhes seja imposta a condição de indivíduos sem estado, incide, contra eles, uma ordem jurídica produzida por um Estado que sequer os reconhece enquanto seres humanos partícipes de uma comunidade global.
Esta vida descartada, que sofre a expropriação de sua identidade por meio de um poder conferido ao estado, acaba por materializar uma das manifestações da soberania inerente aos Estados-nações, que é “[…] a capacidade de suspender os direitos de indivíduos ou grupos ou de excluí-los da comunidade política. Se alguém é excluído, passa a integrar um espaço ou condição de vida nua, e a bios da pessoa não está mais vinculada a seu status político.”6 E, aqui, reside um paradoxo de que, “[…]quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual.”7
Os sem estado, portanto, têm a vida descartada pelo plano político-jurídico-internacional em razão de poderes que sobre eles são exercidos, em que pese se encontrem, juridicamente, destituídos de qualquer cidadania ou direito. Assim sendo, aqueles poderes operam de maneira discursiva e fundam a subjetividade e a própria materialidade desse “outro”.
Os casos de violência contra imigrantes, que são entendidos pela lógica da atual sociedade pós-moderna e liberal como um “outro” que é perigoso, alheio e estranho, são recorrentes e desafiam as estruturas de poder que pretendem conferir segurança jurídica, social, cultural e de existência àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Discorrendo acerca da formação dos autuais Estados-nações, Butler salienta que “o estado diz respeito a estruturas legais e institucionais que delimitam certo território (embora nem todas as estruturas pertençam ao aparato do estado). Assim, do Estado, espera-se que forneça a matriz que estabelece as obrigações e prerrogativas da cidadania”8. .
Desta feita, esperança-se, do Estado, a conformação e a aplicação de institutos e de meios protetivos e assecuratórios para uma existência e o gozo de uma vida digna, inclusive no tange ao acolhimento e à hospitalidade de estrangeiros e migrantes, legais ou não. Porém, ao passo que cabe ao Estado a promoção de tais direitos que ora se defendem como sendo fundamentais, é a ele que cabe, também, a sua limitação.
Assim o sendo, percebe-se que o recebimento do migrante ou estrangeiro, pelos Estados-Nações soberanos, está cada vez mais obstada e proibida, por meio de uma hospitalidade condicionada e vinculada à força conferida à lei e ao aparato estatal, desembocando em uma verdadeira necropolítica que visa exterminar o “outro”.
O poder absoluto, portanto, que é conferido ao Estado soberano, é revestido, pelo Direito, de legalidade e justiça, quando, em verdade, é o mecanismo utilizado para promover um verdadeiro genocídio institucionalizado e racionalizado. “A partir dessa perspectiva, a expressão máxima da soberania é a produção de normas gerais por um corpo (povo) composto por homens e mulheres livres e iguais.”9
Não que a Soberania, por meio da atuação de seres humanos livres, não possa ter como foco o exercício da liberdade em prol do seu desenvolvimento e do gozo e exercício da razão na esfera pública, com atenção aos direitos e garantias fundamentais dos povos; o que se problematiza e causa preocupação “é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações.”10
Lendo-se a soberania, ainda, sob a ótica da colonização, ela se exprime como “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”11 Ou seja, a Soberania passa a ser operada como um regime de poder e morte sobre o “outro”; um necropoder que se impõe por meio de uma necropolítica.
Mbembe, fazendo uma leitura de Georges Bataille, salienta que o soberano “não respeita os limites de identidade mais do que respeita os da morte, ou, ainda, esses limites são os mesmos; ele é a transgressão de todos esses limites.”12
Esse poder de segregar, dividir, impedir e matar é o que conforma e confirma o necropoder por meio de uma necropolítica institucionalizada e verticalizada, que cria zonas proibidas, fronteiras intransponíveis, raças superiores e seres não humanos ou desprendidos de uma humanidade ocidental, que os coloca diante da possibilidade da morte. De maneira categoricamente política, as pessoas “[…] são decompostas entre rebeldes, crianças-soldados, vítimas ou refugiados, civis incapacitados por mutilação ou simplesmente massacrados ao modo dos sacrifícios antigos; enquanto os ‘sobreviventes’, depois de um êxodo terrível, são confinados a campos e zonas de exceção.”13
Como exercício necessário de resistência com fins de mudanças institucionais, políticas e jurídicas, “exercer uma liberdade e afirmar uma igualdade exatamente em relação a uma autoridade que as excluiria é mostrar como a liberdade e a igualdade podem e devem se mover para além de suas articulações positivas.”14
Neste sentido, para Derrida, “o direito não é justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável”15 e “uma crítica eficaz deve incidir sobre o próprio corpo do direito, sua cabeça e seus membros, sobre as leis e usos particulares que o direito toma sob a proteção de potência16 . Esse incalculável justo da justiça, decifrado por experiências aporéticas, pode ser alcançável pela desconstrução – pelo “desconstrucionismo”, que se daria a partir do seu próprio movimento nas entranhas do sistema legal e na sua própria história, na busca pela efetivação da justiça em um direito que deve ser posto em ação.
Há, então, que se materializar uma radicalização e uma releitura acerca do mito que permeia o poder e a estrutura do Estado-nação, do direito e do poder de polícia estatal, com vistas à abertura do mundo ao humano. “Enquanto não nos damos os meios teóricos ou filosóficos para pensar essa co-implicação da violência e do direito, as críticas habituais permanecem ingênuas e inconsequentes.”17
Aceitemos ou não, para iniciar a mudança, devemos admitir que “ainda não existe democracia digna desse nome. A democracia ainda está por vir: por engendrar ou por regenerar.”18 O que se espera, é que ela não fique apenas no “por vir”; mas que “venha” e forme cidades-refúgio para seres humanos, de forma indistinta.
Referências
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1. MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, p.21.
2. Idem, p.31.
3. BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakarvorty. Quem canta o Estado-nação? Língua, política, pertencimento. Trad. de Vanderlei J. Zacchi e Sandra Goulart Almeida. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018, p.9.
4. Idem.
5. Idem. p.23.
6. Idem. p.42.
7. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2020, p.27.
8. BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakarvorty. Quem canta o Estado-nação? Língua, política, pertencimento. Trad. de Vanderlei J. Zacchi e Sandra Goulart Almeida. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018, p.16.
9. MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, p.9.
10. MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, p.10.
11. Idem. p.41.
12. Idem. p.15.
13. Idem. p.58.
14. BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakarvorty. Quem canta o Estado-nação? Língua, política, pertencimento. Trad. de Vanderlei J. Zacchi e Sandra Goulart Almeida. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018, p.63.
15. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. de Leyla Per-rone-Moisés. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018, p.30.
16. Idem. p.96.
17. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. de Leyla Per-rone-Moisés. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018, p.95.
18. Idem, p.108.