O TST lançou em outubro de 20221 , juntamente com o Conselho da Justiça do Trabalho, a “Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual – Por um ambiente de trabalho mais positivo”- a qual trouxe definições sobre os diversos tipos de assédio, com imputação de dispositivos normativos infringidos pelas condutas descritas e recomendações para identificação, prevenção e enfrentamento.
A desigualdade sensível em que se encontram as mulheres brasileiras no que tange a inserção efetiva no mercado de trabalho, conforme já tivemos oportunidade de comentar em diversos artigos desta coluna, nos conduz forçosamente à reflexão a propósito da percepção pelas trabalhadoras de variados tipos de assédio com conotações morais, sem prejuízo de coexistência entre eles (como por exemplo entre assédio sexual e assédio moral).
E a detecção da natureza até mesmo corriqueira de episódios sob tais contornos, envolvendo pessoas do gênero feminino no ambiente laboral, nos impõe o dever de ponderação do contexto jurídico hodiernamente configurado, sem descurar da consideração de alternativas que a vítima poderá ostentar frente à realidade e seus múltiplos obstáculos.
A criminalização de condutas dissonantes com os princípios basilares da Constituição, mediante atribuição de penalidades sob graus mínimo e máximo não convergentes em todas as hipóteses, representa inequivocamente resposta legal de repúdio a comportamentos perniciosos, os quais, justamente pelos seus contornos, integram a definição de tipos penais sob claro escopo de desestímulo ao ilícito. Não obstante, a implementação de políticas públicas e de natureza interna pelos próprios empregadores e demais responsáveis pelo gerenciamento das atividades de pessoas jurídicas mostra-se igualmente relevante e até mesmo indispensável para que sejam plenamente expurgadas tais condutas dissonantes com o Direito. E sem prevenção adequada, conscientização sobre a responsabilidade de cada indivíduo partícipe da relação laborativa, com mantença tácita de cultura que prima por admissão injustificável de desigualdade de gênero, o Direito Penal não será hábil a repelir do corpo social tais ilícitos, por si só, ainda que seja aplicado de modo compatível com o sistema jurídico e ditames superiores da Carta Magna. Por conseguinte, temos que a salutar criminalização de condutas de importunação sexual, assédio sexual e porventura, assédio moral (Projeto de Lei 4742/01, em trâmite atualmente no Senado Federal) não basta para , senão aniquilamento de ilícitos de modo cabal, minoração de relevante proporção em que se verificam diuturnamente tais eventos em detrimento de vítimas do gênero feminino.
Com efeito, a Lei 13.718/18 , que passou a vigorar na data de sua publicação (25/09/2023), alterou o Código Penal para inserir novos delitos dentre eles importunação sexual (artigo 215-A) e divulgação de cena de estupro ou cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou pornografia (artigo 218-C), dentre outros dispositivos.
O assédio sexual foi conceituado como crime no artigo 216-A do mesmo códex.
Além da variedade de condutas mencionadas na descrição dos respectivos tipos penais, tem-se que a importunação sexual configura crime mais gravoso frente à penalidade prescrita, repudiando ato libidinoso não consensual. O assédio sexual, por seu passo, reclama a necessidade do autor do delito usar sua condição de superior hierárquico ou de possuir ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função e valer-se da mesma para constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual. O assédio sexual pode restar consumado pelo simples constrangimento da vítima ou pela reiteração de prática de atos constrangedores 2 . A importunação sexual igualmente pode restar esboçada por única ação, não reiterada, consistente no cometimento de ato libidinoso contra a vítima e sem a sua anuência, com escopo da satisfação da própria lascívia ou de terceiro3 . Veja-se que o delito de importunação sexual pode ocorrer no ambiente de trabalho, sem prejuízo de diversos crimes tais como o de perseguição (“stalking” – artigo 147, A do Código Penal), os quais mencionaremos a seguir, dentre outros, tendo em mente a vítima de gênero feminino.
Forçoso que constatemos que apesar do delito de assédio sexual ostentar como bem jurídico tutelado a liberdade sexual, ao aludir ao aproveitamento pelo autor do ilícito da condição de superior hierárquico ou consideração de ascendência inerentes ao exercício de emprego , cargo ou função para constrangimento da vítima, de forma patente contém juízo de valor negativo a propósito do comportamento do autor do ilícito (aproveitamento da condição de superior hierárquico ou ascendência) no ambiente de trabalho. E dúvidas restam ausentes acerca da reprovabilidade da conduta mencionada já que a obreira ostenta fundado receio de perder seu emprego ou função remunerada em situações análogas o que intensifica seu constrangimento, não raras vezes estancando sua reação imediata ou mesmo influindo na maneira em que a autodefesa será exercida.
Bastante usual tomarmos conhecimento, inclusive pela imprensa4 , quanto a vazamento de imagens íntimas de mulheres, albergando igualmente o ambiente laboral. Boletins de ocorrência lavrados em estados da região sudeste entre 2019 a 2022 discriminaram que em 75% dos casos em que os denunciados foram identificados, tratavam-se de pessoas íntimas, amigos, familiares ou pessoas que mantinham relações amorosas com as vítimas. Trata-se de delito que prima pela quebra na relação de confiança e tentativa de humilhação da vítima na denominada “pornografia de revanche” a qual, por intermédio da Lei 13.718/18, passou a corresponder ao tipo previsto no artigo 218-C do Código Penal. A inexistência de consentimento da vítima para exposição de suas imagens íntimas (nudes, cenas de sexo, etc) em especial no ambiente de trabalho (através de computadores conectados ou não em rede, sites das empregadoras, dentre outros), como já tivemos oportunidade de tomar conhecimento por variados relatos, ensejam danos vultosos à vítima. Além da possibilidade de rescisão do contrato de trabalho a vítima se vê invadida, ofendida, desprestigiada e tem até mesmo a sua competência profissional desacreditada em virtude da exposição indesejada o que obstaculiza, não restam dúvidas, quer a continuidade do exercício de suas funções, quer eventual recolocação no mercado de trabalho. O adoecimento emocional com tentativas de suicídio/prática de autolesões como cortes em antebraços e pulsos, correspondem a narrativas corriqueiras, reveladoras da gravidade das sequelas para a vítima em virtude da violência perpetrada.
O assédio é um comportamento que tem diferentes faces, diferentes formas de manifestação, podendo ser mais explícitas ou mais veladas. É uma questão a ser abordada na perspectiva do princípio da dignidade humana e a dignidade humana é um direito humano fundamental, do qual toda e qualquer pessoa é titular, como estabelece a Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 1º. Inciso III. Já em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos havia assegurado que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e em direitos”.
Ao falarmos de assédio moral, estamos nos referindo a um comportamento que fere a dignidade humana e se configura em condutas abusivas, insistência inoportuna junto a alguém ou mesmo junto a um grupo. Ele se identifica como uma série de comportamentos que importunam, humilham, incomodam, perseguem de forma impertinente, com intenção de desestabilizar emocionalmente, sendo seu alvo uma pessoa ou um grupo específico, mais comumente identificados, tanto a pessoa como o grupo, por questões de gênero, de etnia, de opção sexual, de idade, de condição social, de escolaridade, de religião.
O assédio moral no trabalho, tal como todas as faces do assédio, é ofensivo à dignidade humana e sua naturalização permite supor uma equivocada relação de poder entre empregador/empregado, superior hierárquico/subalterno, não excluindo, no entanto, a ocorrência entre pares.
É preciso acrescentar a forma de stalking, um crime de assédio que pode ser identificado como assédio moral. Ele se manifesta como a perseguição decorrente de uma obsessão e se apresenta como invasão da esfera de privacidade da vítima ou perturbação dessa esfera repetidamente. Indica modos de esconder intenções reais. Manifesta-se em comportamentos que geram constrangimento, humilhação, importunação, violando o princípio da dignidade humana.
No site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encontramos o entendimento de que a configuração do assédio moral se concretiza em “toda conduta abusiva, a exemplo de gestos, palavras e atitudes que se repitam de forma sistemática, atingindo a dignidade ou integridade psíquica ou física de um trabalhador.” Assim, toda e qualquer situação que possa ser considerada ofensiva pode ser identificada como assédio moral no trabalho. Mas, é preciso atentar que, para se configurar o assédio, é necessário que essa conduta seja reiterada e prolongada no tempo, com a intenção de desestabilizar a vítima. Como esclarece o CNJ, os episódios isolados não configuram, necessariamente, assédio moral, mas podem até caracterizar dano moral.
Entendemos que a necessária interlocução entre vários setores do Estado e a sociedade civil favorece o surgimento de ações efetivas que visem ao respeito e à defesa do princípio da dignidade humana. Buscando dar vigor a esse argumento, atentamos para o que está estabelecido em diferentes documentos. Como supra mencionado, no dia 12 de março de 2019, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovara o Projeto de Lei 4742/01, que tipifica no Código Penal o crime de assédio moral no ambiente de trabalho, estipulando a pena de detenção de um a dois anos e multa, sendo a proposta enviada ao Senado.
O Ato Conjunto TST, CSJT, GP nº 8, de 21 de março de 2019, instituiu a política de prevenção e combate ao assédio moral no Tribunal Superior de Trabalho e no Conselho Superior de Justiça do Trabalho, com a consequente publicação, pela Secretaria de Comunicação Social do Tribunal Superior do Trabalho, da Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral, a qual também nos reportamos, a qual consiste instrumento que esclarece e orienta o trabalhador quanto à tipificação do assédio moral no trabalho. Mas, o assédio moral e o assédio verbal permaneceram como crimes de danos morais, ressalvando-se que, no constrangimento exercido por superior hierárquico ou com ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, para obtenção de vantagem ou favorecimento sexual, a vítima está amparada pelo artigo nº 216-A, do Código Penal Brasileiro, acrescentado pelo Decreto-Lei nº 10 224, de 15 de maio de 2001.
Se a perseguição era considerada apenas um ato de contravenção, delito de perseguição persistente, a Lei nº 14 132, de 31 de março de 2021 modificou essa classificação ao inserir no Código Penal o Artigo 147-A, identificando o assédio moral como crime de ação penal pública, condicionada à representação. Está inserido, pois, na esfera criminal, mas pode ocorrer processo civil por danos morais e materiais. O objeto jurídico da lei é a liberdade individual e a tranquilidade pessoal.
Na sequência desses documentos, em.3 de julho de 2023, foi sancionada a Lei 14.612, que insere punição por assédio sexual ou moral no Estatuto da Advocacia e, em seu Artigo 34, inciso XXX, § 2º, define assédio moral como conduta praticada no exercício profissional que possa causar ao estagiário, ao advogado ou a qualquer outro profissional ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física, visando a sua exclusão de suas funções ou a desestabilizá-los emocionalmente.
Podemos, então, perguntar como enfrentar o assédio moral e a resposta nos dirá que a fundamentação legal permite que seja aberta uma ação penal pública condicionada à representação, o que quer dizer uma manifestação formal da vontade da vítima de que o perseguidor seja investigado e processado. Exige da vítima procurar o reconhecimento judicial do ato de que foi alvo, o que oferece argumento para que seja combatido qualquer tipo de abuso. Asseveramos, pois, que o primeiro passo para o enfrentamento dessa conduta abusiva consiste em procurar reconhecimento judicial.
Entendemos que o enfrentamento do assédio nos exige a interlocução de vários setores do Estado e da sociedade civil. E, neste momento, pomos em foco o assédio moral e a proteção do trabalhador. Assediar é perseguir com insistência e o assédio dá corpo à insistência inoportuna. O assédio moral é um ataque à dignidade da pessoa humana e a princípios e bens jurídicos consagrados. Precisa ser visto e tratado como uma forma de agressão ao direito fundamental à vida, direito devidamente consagrado pelo ordenamento jurídico nacional e internacional. Por esta razão, sublinhamos a importância de ser cultivada uma cultura de integridade no serviço público como política pública fundamental, cabendo a governantes e gestores a ação de sua permanente promoção e incentivo.
No ambiente de trabalho, quer seja público, quer seja da iniciativa privada, as condutas de assédio promovem a degradação do ambiente, provocando danos à saúde física e mental do trabalhador, repercutindo na vida pessoal e familiar, em seu meio social. É uma questão, pois, com a qual não cabe somente ao Estado preocupar-se. É preciso instaurar como responsabilidade coletiva o desenvolvimento de ações orientadas no sentido de respeitar e defender o princípio da dignidade humana, agredida pelo assédio moral.
Referências
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1. link, matéria veiculada em outubro de 2022, acessada em 22/09/2023;
2. link, matéria especial veiculado em 30/10/2020, acessada em 22/09/2023;
3- TJ-MG, Apelação Criminal APR 50011102020218130116, publicado em 27/10/2022;
4- link, “Marido, patrão e até pai de vítima aparecem entre denunciados por vazamentos de nudes em SP e RJ”, por Gabriel Coquer, matéria veiculada em 03 de maio de 2023, acessada em 25/09/2023;