Recentemente assistimos a denúncia de agressão sexual (estupro) supostamente perpetrado por ex-jogador da seleção brasileira em território espanhol nas dependências de casa noturna, com veiculação de informes sobre a incidência de diploma legal daquele país (entrou em vigor em 2022), popularmente denominado “Só sim é sim”, o qual instituiu penalidades mais severas para crimes cometidos contra mulheres, oriunda a legislação de grave caso de violência sexual consumada em 2016, caracterizado estupro coletivo da vítima. O artigo 178 do aludido diploma legal estabeleceu que para consideração da prática sexual como consensual é imprescindível o exercício pela vítima de atos expressos a demonstrar manifestação muito clara e livre de sua vontade 1 . No aludido texto normativo restou explícito o fato de que o uso de violência ou intimidação não será mais necessário para caracterizar o delito de estupro já que a agressão sexual pode se verificar sem o uso de força ou resistência da vítima cuja passividade pode resultar de intimidação , ingestão de álcool ou diversas substâncias, a título elucidativo e sem taxatividade das hipóteses. A crítica deduzida nos meios jurídicos espanhóis está adstrita ao questionamento de eventual infringência ao princípio da presunção de inocência posto ser suficiente a palavra da vítima para condenação penal.
De modo absolutamente exemplar, é relevante que se consigne, a suposta vítima recebeu imediato apoio e encaminhamento pelo estabelecimento em que se encontrava por ocasião do indigitado delito. Consoante noticiado pela imprensa 2 a vítima estaria em prantos ao ser abordada por um segurança da boate, que cumpriu manual de segurança (mediante a implementação de protocolo denominado “Ask for Angela” e “No Callem”). Por intermédio do protocolo executado, a vítima ao indagar a algum funcionário por “Angela” já estará comunicando claro pedido de ajuda e a receberá do funcionário do estabelecimento, com discrição. Na hipótese em comento do jogador brasileiro a polícia foi chamada, restando pois acionado protocolo de agressão sexual celeremente. A mesma foi conduzida por funcionários a local discreto facultando-lhe companhia, preferencialmente feminina, antes de ser socorrida e recebeu assistência médica com coleta de material genético (do aventado agressor) além de haver ingerido remédios antivirais para prevenir infecções sexualmente transmissíveis, diante da ausência de uso de preservativo por parte do acusado. A origem do protocolo “Ask for Angela” é britânica.
Celeumas à parte, tendo o famoso jogador negado a acusação com reconhecimento de seu material genético na vítima examinada, encontrando-se na atualidade detido preventivamente, pendente de deliberação judicial postulação da defesa de submissão da vítima a análise técnica por psicólogo contratado pelo acusado3 (operada recusa por parte da vítima, encontrando-se a solução da controvérsia a cargo de esfera recursal, consubstanciando-se a tese defensiva na assertiva de que a vítima seria detentora de “distorção narrativa”, consoante noticiado pela imprensa) a circunstância de haver implementação do protocolo à risca por estabelecimento comercial permitiu o exame médico da vítima e coleta de material genético do indigitado agressor com extrema rapidez e eficiência. Há de se ponderar, inclusive, que a reação da vítima observada por funcionário da boate que a abordou aos prantos também é um elemento probatório bastante palpável no sentido de elucidar acerca da preexistência ou não de consentimento para conjunção carnal.
Aos detratores da legislação , dentre os quais certamente se destacam profissionais da área jurídica em território espanhol que ostentam dúvidas consistentes sobre potencial infringência ao princípio da presunção de inocência, há que se pontuar que a primeira não decorre de espírito emulativo mas da verificação no plano concreto de discrepância exacerbada entre o tratamento outorgado a pessoas de gêneros distintos no seio comunitário, imperiosa legislação de cunho protetivo para lograr-se êxito na aproximação do conceito de igualdade material entre homens e mulheres. Ademais, pondera-se que em análise judicial oportuna também serão valorados elementos subjetivos atrelados à vítima tais como sua vida pregressa, estabilidade emocional rotineira, etc. Tal circunstância, ou seja, procedimento de avaliação meritória frente às provas a serem trazidas ao conhecimento do órgão julgador, em hipótese alguma se traduz em chancela positiva à discriminação da vítima ou descrédito premeditado ao teor de seu relato. Menos ainda acolhimento incondicional e sistemático a acusação.
É tão relevante a desconstrução de estereótipos de gênero em hipóteses de violência sexual que o STJ já ostenta o posicionamento de que em se tratando de feito que verse sobre violência doméstica (que pode abarcar violência sexual), a palavra da vítima ostenta especial valor probatório diante da eclosão de tais delitos usualmente de modo clandestino. A propósito, vide a seguinte ementa:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. INSUFICIÊNCIA DA PROVA. AGRAVANTE DO MOTIVO FÚTIL. SÚMULA N. 7 DO STJ. RELEVÂNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA. REGIME INICIAL. SÚMULA N. 83 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O STJ reconhece a relevância da palavra da vítima no tocante aos crimes decorrentes de violência doméstica, em vista da circunstância de essas condutas serem praticadas, na maioria das vezes, na clandestinidade. Precedente. Incidência da Súmula n. 83 do STJ. 2. A verificação sobre a insuficiência da prova da condenação implicaria a necessidade de revolvimento fático-probatório dos autos, procedimento vedado, em recurso especial, pelo disposto na Súmula n. 7 do STJ. 3. A agravante do motivo fútil foi devidamente motivada pelas instâncias ordinárias e, para rever essa conclusão, seria necessária a dilação probatória, inviável na via eleita pelo disposto na Súmula n. 7 do STJ. 4. A presença de circunstâncias judiciais desfavoráveis ou de agravantes justificam a imposição de regime inicial mais gravoso do que aquele previsto tão somente pelo quantum de pena aplicada. Nesse ponto, a pretensão é inviável pelo entendimento da Súmula n. 83 do STJ. 5. Agravo regimental não provido.
(STJ – AgRg no AREsp: 1925598 TO 2021/0217696-8, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 26/10/2021, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/11/2021)
De ver-se que o Brasil consoante dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) consiste no quinto país do mundo em ranking de violência contra a mulher 4 , com majoração do percentual de feminicídios em 2022 no patamar de 5% 5 , a título elucidativo.
Compulsar tais dados empíricos é bastante percuciente para a finalidade de se meditar sobre incongruência ou grau exacerbado e imotivado da legislação espanhola com a realidade daquele país que como vem se verificando em esfera mundial, também mantém em sua cultura traços acentuados do patriarcado. E a resposta é negativa.
Justamente pela pertinência legislativa e eficácia observada no episódio que envolveu ex-jogador da seleção brasileira o Estado de São Paulo recentemente teve incorporadas a seu arcabouço normativo duas novas leis.
Tratam-se das Leis 17621/23, de 03 de fevereiro de 2023, já em vigor, que estabelece obrigação a bares, restaurantes e casas noturnas e de eventos a adotar medidas de auxílio à mulher que se sinta em situação de risco (mediante oferta de acompanhante até veículo ou diverso meio de transporte ou ainda comunicação à polícia, com a aposição de cartazes em banheiros ou ambientes outros noticiando às usuárias a disponibilidade do estabelecimento para auxílio à mulher sob situação de risco ou meios diferenciados de comunicação à vítima) e Lei 17635 de 17 de fevereiro de 2023 (que estabeleceu prazo de sessenta dias para início da vigência a partir da publicação), a qual preconizou o dever de capacitação de todos os funcionários de empresas enquadradas como bares, restaurantes, boates, clubes noturnos ou casa de espetáculos ou similares, para habilitação com o escopo de identificação e combate ao assédio sexual e cultura do estupro praticados contra mulheres, impondo o dever de comunicação expressa em local visível de dados do funcionário ou funcionária responsáveis pelo atendimento e proteção à mulher que se sinta em situação de risco. Houve expressa previsão, ademais, à imposição de sanções tais como multa, suspensão de autorização para funcionamento e outras em caso de inobservância pelos estabelecimentos de tais normas, reportando-se ademais à oportuna regulamentação legal quanto a detalhamento técnico de sua execução e critérios à capacitação dos funcionários.
Sob outro turno, em 14 de março corrente o Conselho Nacional de Justiça erigiu a obrigatoriedade de observância das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Poder Judiciário , editando Ato Normativo (anteriormente a Recomendação 128 do CNJ apenas sugeria a adoção do referido Protocolo).
Devemos, outrossim, meditar sobre episódios que envolvem jogadores brasileiros no exterior em escândalos de imputações de crimes sexuais. Sem adotarmos postura condenatória ou convicta a priori sobre a efetiva eclosão de delitos, a própria divulgação de eventos similares de modo não isolado já indicia a questão da visão cultural do homem brasileiro em relação à mulher de modo objetificado, a princípio.
Quem nos auxilia a compreender o intrincado contexto é Marilena Chauí ao aclarar a propósito do mito da não violência brasileira 6 :
“….Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, isto é, de ausência de direitos; mais do que isso, a sociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega para o lugar efetivo da produção da violência isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o machismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico de superfície”.
Lúcida entrevista foi concedida por empresário da noite paulista ao jornal O Estado de São Paulo em 20 de fevereiro de 20237 no sentido de recomendar restrições a open bar e entrada graciosa de mulheres em determinados dias e horários sem vigilância em áreas vip com objetivo de evitar a fragilização do público feminino pela ingestão menos controlada de substâncias alcoólicas dificultando a auto defesa em situações de risco de agressões sexuais. Reportou-se à cultura estabelecida inclusive quanto a assédio, à necessidade de educação e enfrentamento às desigualdades sociais e treinamento inclusivo de funcionários para melhor identificar e acolher eventuais vítimas.
Por conseguinte, das iniciativas do CNJ, do legislativo e executivo paulistas em harmonia com legislação espanhola, da jurisprudência do STJ e consoante profissional que exerce atividade empresarial em setor correspondente ao que representou palco de suposta agressão sexual por ex-jogador da seleção brasileira na Espanha, a violência sexual em detrimento da mulher eclode como sequela da diversidade cultural entre gêneros na conjuntura de nossa sociedade, reduzindo a premissa do artigo 5º , inciso I da Carta Magna a mera igualdade formal a ser suplantada por mecanismos jurídicos hábeis, como bem obtemperou em março de 2023 nossa colunista Fernanda Las Casas na coluna “Família aos Bocados” no artigo intitulado “A fixação da divisão do pagamento de pensão alimentícia em uma análise de igualdade de gênero”, cuja leitura fortemente recomendamos.
Referências
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1. www.g1.globo.com, matéria veiculada em 24/01/2023, entrevista ao professor de Direito Penal da USP Alamiro Velludo, acessada em 25/03/2023;
2. www.oglobo.globo.com, matéria veiculada em 26/01/2023, acessada em 25/03/2023;
3. www.cnnbrasil.com.br, matéria veiculada em 22/03/2023, acessada em 25 de março de 2023;
4. www.portal.unit.br, acessado em 26/03/2023;
5. www.g1.globo.com, matéria veiculada em 08/03/2023, acessada em 26/03/2023;
6. Chaui, Marilena, Sobre a Violência, Volume 5, Belo Horizonte, Autentica, 2021, pg 41;
7. www.estadao.com.br, matéria veiculada em 20 de fevereiro de 2023, entrevista concedida por Facundo Guerra, acessado em 26/03/2023;