Incursão domiciliar sem mandado judicial em situação de flagrante delito (Parte 1)

Incursão domiciliar sem mandado judicial em situação de flagrante delito (Parte 1)

Incursão-domiciliar

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), recentemente, deliberou sobre importante matéria relacionada à garantia da inviolabilidade domiciliar em contexto de flagrante delito, prescindindo-se, nesse caso, de mandado judicial para cumprimento das buscas. Neste mês, busca-se analisar o acórdão vinculado ao HC 169.788/SP e compreender as premissas que conduziram a decisão, proferida em sede de repercussão geral.

 

Na última edição do Informativo do STF, o de número 1126/2024, foi publicado resumo do discutido no HC 169.788/SP, oportunidade em que o plenário da Corte fixou o entendimento de que não há ilegalidade na ação de policiais militares que ingressam, sem mandado judicial, no domicílio de quem corre, em atitude suspeita, para o interior de sua residência ao notar a aproximação da viatura policial. Isso porque, segundo o tribunal, os policiais militares estariam amparados em fundadas razões sobre a existência de flagrante do crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito”.

Essa decisão permite transitar, ainda que às pressas, por diversos temas correlatos próprios do direito constituvencional (constitucional e convencional), da dogmática penal e do processo penal. Nesta oportunidade, destaca-se quatro deles: a garantia da inviolabilidade domiciliar, a situação de flagrante delito que justifique a prisão pré-processual propriamente dita, a classificação doutrinária do crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito” e a busca e apreensão domiciliar como meio de prova típica.

Em razão da limitação deste espaço, sem se desviar do objetivo central proposto, fragmenta-se a exposição em quatro partes resumidas. Nesta ocasião, convém se concentrar na garantia fundamental da inviolabilidade domiciliar e no flagrante delito Na próxima publicação, serão trabalhados os dois outros temas restantes, ocasião em que se buscará compreender como o STF os correlacionou no julgamento do HC 169.788/SP.

A inviolabilidade do domicílio como garantia constituvencional

O art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal (CF), prevê a garantia fundamental da inviolabilidade do domicílio, sob os seguintes termos: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (grifos nossos).

O art. 11, da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José, concentra o regime jurídico de proteção à honra, com destaque para seus itens 1 a 3:

 

  1.  Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
  2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

  3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas” (grifos nossos).

 

Tanto no primeiro diploma regulatório citado, quanto no segundo, percebe-se que a proibição de violação ao domicílio do cidadão ou cidadã consubstancia uma importante garantia fundamental e configura o standard performático a ser seguido pelo Estado democrático, apenas excetuado em casos extraordinários e que justifiquem a relativização dessa garantia, na linha do disposto no art. 283, §2º, do Código de Processo Penal (CPP) (“A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”).

A princípio, o domicílio é impenetrável na hipótese de não assentimento ao ingresso de terceiros, não se admitindo incursões arbitrárias, abusivas ou autoritárias nessa  importante projeção material da intimidade da pessoa. Tal conteúdo ético, que preenche a garantia da inviolabilidade domiciliar, é caro ao processo de fortalecimento da cidadania e à consolidação das instituições democráticas.

A problemática inicial advém da necessidade de definição de domicílio, sem a qual o manejo da garantia estaria substancialmente prejudicado, ou sob risco de desvirtuamento. O Código Penal (CP) nos oferece fronteiras exegéticas objetivas que possibilitam uma delimitação semântica à categoria jurídica do domicílio em seu art. 150, §§ 4º e 5º, ao definir o que se compreende e o que não se compreende como casa (domicílio), a alçar a definição a elemento objetivo do tipo inerente ao crime de violação de domicílio

 

§4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade

§5º – Não se compreendem na expressão “casa”: I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

 

De todo modo, é certo que a inviolabilidade domiciliar sofre relativizações, como se infere da segunda parte do inciso XI, do art. 5º, da CF, acima negritada, a saber, nas hipóteses de: a) flagrante delito; b) desastre; c) prestação de socorro; d) por ordem judicial, obviamente fundamentada (art. 93, inciso IX, da CF1 ).

Dentre estas exceções à garantia da inviolabilidade domiciliar, põe-se uma lente de aumento sobre a primeira (caso de flagrante delito), em atenção aos fins aqui propostos. Em estudo subsequente, propõe-se compreender os desdobramentos da concatenação entre situação flagrancial, busca e apreensão domiciliar e permanência executiva do crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito”, nos moldes desenvolvidos pelo STF no julgado destacado.

O flagrante delito

A situação que adjetiva o delito como flagrante é interpretável à luz do art. 302, do CPP, a partir de hipóteses deveras extensivas à literalidade do sentido inferido de “flagrância”:

 

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I. está cometendo a infração penal; II. acaba de cometê-la; III. é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV. é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

 

Como explicam Távora e Alencar (2022, p. 941-942), flagrante é todo delito que “queima”, que ainda “arde”, reportando-se ao que está acontecendo no exato instante ou que acabara de acontecer. Trata-se de uma medida pré-cautelar de natureza pessoal (Lopes Jr., 2009), sujeita a posterior crivo judicial quanto à sua legalidade e necessária à imediata cessação do cometimento do crime ou à inibição momentânea dos seus deletérios efeitos ante as hipóteses legais. Importante destacar que, em conformidade com a primeira parte do art. 301, do CPP, qualquer pessoa, independentemente de exercer função pública, associada ou não, às forças de segurança pública, pode efetuar a prisão em flagrante, conquanto presentes às hipóteses do art. 302. Trata-se do chamado flagrante facultativo, em contraposição ao flagrante obrigatório, este sim, reservado a agentes de segurança pública (art. 301, parte final, CPP).

A doutrina propõe, à vista dos incisos do art. 302, do CPP, uma taxonomia que evidencia a tendência do legislador de extravasar a semântica comumente associada ao que se compreende como flagrante. Fato é que não há maiores complicações de se compreender o chamado flagrante próprio (real ou verdadeiro) diante dos incisos I e II do CPP.

Já os incisos III e IV configuram o que a doutrina denomina, respectivamente, de flagrante impróprio (irreal ou quase flagrante) e de flagrante presumido (ficto ou assimilado). O flagrante impróprio ocorre em situações de perseguição (delimitadas no art. 290, §1º, do CPP), logo após o cometimento do crime, a partir de elementos que induzem à presunção de que o sujeito é o autor do fato delituoso. Por sua vez, no flagrante presumido, o sujeito é preso logo depois de cometer o crime, na posse de instrumentos, armas, objetos ou papéis que presumem ser ele o autor, independentemente de prévia perseguição.

Conforme reza o art. 304, caput, do CPP, assim que apreendido o sujeito, este deverá ser conduzido à autoridade competente, que ouvirá o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Subsequentemente, a autoridade procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva, suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.

Importante assinalar que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 306, caput, CPP).

A fim de exercer o controle judicial de legalidade da prisão em flagrante, o CPP, em seu art. 306, §1º, determina que, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante (APF) e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. De outra sorte, no mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

Ritualisticamente, nos termos do art. 310, caput, e incisos I a III, o juiz, assim que receber o APF, deverá, dentro de  24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente, relaxar a prisão, caso ilegal (conforme determina o art. 5º, inciso LXV, da CF); converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Delineamentos pormenorizados da audiência de custódia podem ser consultados na Resolução n. 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça.

Trata-se do desfecho de um desenrolar que inicia com a situação flagrancial concretamente configurada sob as balizas legais apontadas no art. 302, do CPP, e conclui com a apreciação judicial da legalidade da prisão em flagrante em si e a definição prospectiva dos contornos persecutórios radicados dessa prisão.

Essa digressão à matéria pertinente às hipóteses de flagrante delito (aproveitando-se o momento para revisitar trâmites relevantes à correspondente prisão circunstancial) serve de apoio epistêmico à análise dos aspectos contextuais considerados pelo STF no caso concreto que influíram sobre a decisão de chancela à incursão domiciliar de policiais militares na casa do suposto autor, à míngua de ordem judicial, e à consequente validação de todo o processo criminal subsequente.

No próximo mês, serão apresentados os desdobramentos da concatenação entre situação flagrancial, busca e apreensão domiciliar e permanência executiva do crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito”, nos moldes desenvolvidos pelo STF no julgado destacado.

Até mais.

 

Notas

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1. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

 

Referências

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Disponível em: site. Acesso em: 11 mar. 2024;

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. II, p. 64;

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 17 ed. São Paulo: Ed. Jus Podivm, 2022;

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Informativo 1126/2024. Disponível em: site. Acesso em 13 mar. 2024.

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