Indenização pela posse exclusiva de coisa comum e questões de gênero

Indenização pela posse exclusiva de coisa comum e questões de gênero

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Sob a perspectiva da evolução do Direito Civil pátrio é inevitável que enfoquemos o Código Civil de 1916 como fruto do direito liberal, com destaque ao individualismo, patrimonialismo e positivismo, ostentando em essência três personagens protagonistas na concepção de Sylvio Capanema de Souza: o marido, o contratante e o proprietário.1

A Constituição Federal de 1988 foi aclamada como “Constituição cidadã”, promulgada com 245 artigos e dezenas de disposições transitórias, considerada uma das mais extensas do globo e materializou complexa fusão de direitos legítimos com interesses cartoriais, corporativos, dentre outros, apresentando-se o texto de modo heterogêneo. Paritariamente a avanços relevantes, prestigiando a educação, criação do sistema único de saúde e equiparação de direitos entre homem e mulher, ressalvados diversos, instituiu a Carta Magna privilégios, vantagens remuneratórias bem como algumas reservas de mercado em virtude da confluência de forças presentes na sociedade, espelhadas no texto maior.2

Após 1988, antes mesmo da edição do Código Civil de 2002, assistimos ao fenômeno da constitucionalização do Direito Civil que nada mais é do que a interpretação das normas jurídicas afetas a esse importantíssimo ramo do direito a partir dos valores insertos no texto constitucional, passando dessarte a Constituição Federal à posição de núcleo do sistema jurídico, verdadeiro epicentro, sensivelmente presente tal configuração no que tange ao Direito Privado. Nesse passo, a repersonalização do Direito Civil – e particularmente do Direito de Família- deve ser objetivada sob o viés da solidariedade social e não, como outrora, sob ótica individualista.3

Se conseguimos nos situar no palco contemporâneo do Direito Privado, onde em termos hierárquicos a Carta Magna assume valoração suprema, não podemos deixar de rememorar que tratados internacionais, aos quais o Estado Brasileiro aderiu, também representam conteúdo normativo supralegal, cuja observância é imperiosa.

Em decorrência de julgamentos internacionais e adesão do Estado Brasileiro a tratados alusivos à Direitos Humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará-1996), publicou o Conselho Nacional de Justiça em 2021 o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, inspirado na iniciativa mexicana, a fim de contribuir para implementação de políticas nacionais referentes ao enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário e ao incentivo à participação feminina no Poder Judiciário, em harmonia com o objetivo 5 da Agenda 2030 ONU, de forma a haver a admissão da influência do patriarcado, machismo, sexismo, racismo e homofobia como transversais a todas as áreas do direito, sem restrição à violência doméstica, produzindo dessarte, efeitos na sua interpretação e aplicação nas áreas de direito penal, direito do trabalho, tributário, cível, previdenciário, dentre outras.4

Se por um lado muitos operadores do direito criticam o protocolo, considerando-o não inovador e superficial ou omisso na abordagem de temas importantes, são bastante enfáticos em reconhecer a natureza benéfica da iniciativa a ser estimulada, é de suma relevância notar, por tais operadores.

A Recomendação 128 de 15/02/2022 do CNJ para que os órgãos do Poder Judiciário promovam a adoção do protocolo embora em termos literais não seja vinculante, o é por coerência já que deriva justamente de condenações e adstrição estatal a tratados internacionais, fatores que convictamente ensejarão a produção de reflexos nos julgamentos a serem efetivados pelos tribunais superiores nos próximos anos.

Mesmo que assim seja, a identificação de situações fáticas com outorga de enfoque jurídico atrelado à compreensão de questões de gênero e correlacionadas a direitos humanos ainda é incipiente na atualidade.

A evidenciar a sistemática de aplicabilidade do Direito Privado sob prisma não individualista, como produto da constitucionalização do direito, já possuímos decisões bastante cristalinas de nossos tribunais. Vejamos abaixo alguns exemplos.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais ao julgar a Apelação Cível 1009439-60.2010.8.13.0024 , Belo Horizonte, negou o pedido de arbitramento de aluguéis por imputação de uso exclusivo de bem comum antes da partilha, sob a alegação de enriquecimento ilícito, por não haver ocupação do bem em benefício privativo do ex-cônjuge já que foi empregado para moradia daquele com filho incapaz de ambas as partes. Não houve em absoluto negativa de vigência do artigo 1319 do Código Civil mas a produção de assertiva no sentido de ausência de proveito exclusivo do ex-cônjuge ao passo que o poder parental alberga dever de sustento da prole por ambos os titulares, incluindo o referido dever de sustento gastos com moradia do incapaz. Trata-se da obrigação alimentar in natura, que se compatibiliza com o preconizado no artigo 1707 do Código Civil. O aresto fez alusão ao Recurso Especial 1.699.013/DF, Ministro Relator Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma do STJ, julgamento em 04/05/2021 DJe 04/06/2021. De ver-se que neste último acórdão o Ministro Relator destacou que:

“…. Nesse contexto normativo, há dois fundamentos que afastam a pretensão indenizatória da autora da ação de arbitramento de aluguel. Um principal e prejudicial, pois a utilização do bem pela descendente dos coproprietários – titulares do dever de sustento em razão do poder familiar (filho menor) ou da relação de parentesco (filho maior) – beneficia a ambos, motivo pelo qual não se encontra configurado o fato gerador da obrigação reparatória, ou seja, o uso do imóvel comum em benefício exclusivo de ex-cônjuge.

8. Como fundamento secundário, o fato de o imóvel comum também servir de moradia para a filha do ex-casal tem a possibilidade de converter a “indenização proporcional devida pelo uso exclusivo do bem” em “parcela in natura da prestação de alimentos” (sob a forma de habitação), que deverá ser somada aos alimentos in pecúnia a serem pagos pelo ex-cônjuge que não usufrui do bem – o que poderá ser apurado em ação própria – sendo certo que tal exegese tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa de qualquer uma das partes.

9. Ademais, o exame do pedido de arbitramento de verba compensatória pelo uso exclusivo de imóvel comum por ex-cônjuge não pode olvidar a situação de maior vulnerabilidade que acomete o genitor encarregado do cuidado dos filhos financeiramente dependentes, cujas despesas lhe são, em maior parte, atribuídas…” (grifos nossos)

Pois bem, o que podemos detectar no texto do venerando acórdão é que o embasamento normativo do decisum está muito mais aproximado da compreensão de incidência do dever de solidariedade familiar em oposição à ótica individualista, sem haver dispensado a análise de dispositivos do diploma civilista e da conceituação do dever alimentar, com a inclusão de considerações absolutamente pertinentes sobre a maior oneração do indivíduo que se empenha na prestação de cuidados à prole comum, que na cultura patriarcal usualmente é a mulher (atente-se para o fato de não se tratar da hipótese fática retratada no referido aresto, na qual o ex-marido residia no imóvel com a filha comum). É a denominada maternagem, ou seja, vínculo necessário para atender às necessidades físicas e psíquicas para que o bebê e a criança tenham um desenvolvimento emocional saudável, mediante a criação de relação de acolhimento e segurança.5 De ver-se que, como não é dificultoso perceber, o desenvolvimento da atividade de cuidado dos filhos menores, geralmente atribuído na cultura patriarcal em vigor à mulher em sua quase integralidade, não dispensa a absorção de tempo, dedicação, condições físicas e psíquicas favoráveis da ascendente para amplexo da missão que deveria, em regra, ser compartilhada entre os cotitulares do poder familiar, o que assim se efetiva com muita parcimônia no plano não abstrato.  Tem-se que as mulheres que se debruçam sobre a tarefa de educação dos filhos menores muitas vezes ou são alijadas da possibilidade de desenvolvimento de atividades remuneradas, com emprego de tempo e disponibilidade condizentes no mercado de trabalho e em grau de competitividade com terceiros ou findam por exercer funções com restrições salariais e aplicação de menor número de horas, justamente em decorrência da dupla jornada assumida. Por conseguinte, as diferenças de poder entre gêneros na cultura patriarcal irão por certo atuar na imprescindibilidade de melhor mensuração no enquadramento e interpretação de conjunturas, no âmbito jurídico, o que poderá ensejar, por hipótese, o arbitramento de pensão alimentícia aos filhos em patamar mais exacerbado, sem cunho indenitário todavia à genitora pelo desempenho da função parental, mas condizente com o trinômio que baliza a fixação do quantum alimentar (necessidade, possibilidade, proporcionalidade). Sob o raciocínio do v acórdão de lavra do Ministro Luís Felipe Salomão da Quarta Turma do STJ, cujo texto parcialmente colacionamos, em retratando determinado feito situação em que a mãe cuida da prole e saboreia redução de seus rendimentos por em última análise necessitar despender mais tempo, esforços pessoais e econômicos para o bem estar dos filhos incapazes, poderíamos cogitar em maior vulnerabilidade dessa genitora, sob a compreensão da diferença de poder entre gêneros, fato que representaria terceiro requisito para consideração da ausência de viabilidade de arbitramento de aluguel em detrimento dessa mesma genitora, em havendo por ela posse exclusiva de imóvel comum sob a companhia dos filhos incapazes.

Idêntica lógica é possível para invocação da Lei Maria da Penha em casos de fraude patrimonial em ações de partilha em Varas de Família e Sucessões, face ao ilícito de violência patrimonial. Não é excessivo consignar que a análise judicial far-se-á caso a caso, com averiguação de todas as circunstâncias e provas afetas aos autos.

Atente-se que em no nosso ordenamento jurídico subsiste a vedação ao enriquecimento sem causa , é de rigor ressaltar. Mas a prevalência de princípios atrelados a direitos humanos e de ordem constitucional decorre em diversificadas interpretações jurídicas, o que obrigatoriamente inclui a percepção da cultura patriarcal.

O aluguel pelo uso exclusivo de imóvel comum em caso de vítimas de violência doméstica que permanecem na moradia tampouco pode ser pedido em termos de arbitramento, o que evidencia a incidência dos ditames do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero.6

Com efeito, a Terceira Turma do STJ considerou inexigível o arbitramento de aluguel, pelo uso exclusivo de imóvel comum por um dos condôminos, em favor do coproprietário que foi impedido de continuar ali por medida protetiva decretada pela Justiça, em virtude da suposta prática de violência doméstica (REsp 1.966.556, 07/03/2022). O embasamento do acórdão pelo Ministro Relator, Marco Aurélio Bellizze, foi no sentido de que a imposição de arbitramento de aluguel à vítima de violência doméstica representaria proteção insuficiente dos direitos constitucionais de igualdade e dignidade da pessoa humana, além de chocar-se com o objetivo fundamental do Estado brasileiro de promoção do bem de todos sem preconceito de sexo, atuando como desestímulo para que a mulher buscasse amparo do poder público para rechaçar violência contra si praticada em observância ao disposto no artigo 226, parágrafo oitavo da CF. Houve acréscimo da legitimidade da restrição ao direito de propriedade do agressor sobre o imóvel comum, via de consequência.

Logo, o que podemos mais uma vez averiguar é a natureza impostergável da compreensão a propósito das distinções de relações de poder entre gêneros na cultura patriarcal, no plano da existência, para a atuação ajustada do arcabouço normativo de maneira hábil a disciplinar diversificadas situações conflituosas, nas multifacetadas áreas do direito.

 

Referências

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1. Tangari Baptista Mariana Moreira, Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13- 10 anos de Código Civil- Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos, Volume 2, https://bit.ly/3F0JFWC, acessado em 14 de novembro de 2022;

2. Barroso Luís Roberto, Sem data vênia, um olhar sobre o Brasil e o mundo, 1ª edição, Rio de Janeiro, História Real, 2020, pg 61;

3. Calderón Ricardo, Princípio da Afetividade no Direito de Família, 2ª ed, Rio de Janeiro, Forense, 2017, pg 51;

4. https://bit.ly/2KLHKt6, Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021, Prefácio, acessado em 14/11/2022;

5. https://bit.ly/3ExyLpG, publicado em 18/10/2021, acessado em 14/11/2022;

6. Borges, Lize, Direito Civil no protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ https://bit.ly/3gJG9GC, acessado em 14/11/2022;

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