A singularidade tecnológica é uma área do campo denominado transumanismo (H+), que consiste no aprimoramento biotecnológico do ser humano. Sob a ótica tanto matemática quanto física, é um ponto a partir do qual não é mais possível fazer previsões sobre o que vem após esse ponto, um ponto onde uma evolução acontece de maneira infinita e extremamente rápida. Neste aspecto, a singularidade em Inteligência Artificial seria a disruptura do aprendizado da máquina, uma super inteligência capaz de pensar e agir por conta própria? E o que seria a singularidade no campo das humanas e sua participação nesse futuro H+?
A ideia de singularidade tecnológica está intimamente ligada ao tópico do exponencial crescimento tecnológico: a lei de Moore segundo a qual a complexidade de um circuito integrado duplica a cada 18 meses.1 Assim, potencialmente ao menos, a inteligência artificial pode ultrapassar o cérebro humano em breve. Haverá uma inteligência artificial, uma tecnologia tão avançada que não será mais possível o ser humano auditá-la. Tal mecanismo de inteligência artificial irá começar a se autorregular e o impacto desse fato, além de tecnológico é social, histórico e antropológico.
Assim propomos aqui um outro nível de análise desse fenômeno da singularidade tecnológica, o nível humano e social, um convite a reflexão. De forma que a primeira coisa a se estabelecer é que ela (singularidade tecnológica) não é um ponto, como na matemática ou física, mas sim um processo.
A singularidade tecnológica é um fenômeno social pois impacta em vários sentidos, a vida humana. A exemplo da revolução francesa que, apesar de haver uma data didático pedagógica, foi em fato, um processo que leva centenas de anos com reflexos ideológicos, sociais e humanos até os dias contemporâneos. O aprendizado de máquina (machine learning) é um campo de ciência da computação que dá aos computadores a capacidade de aprender sem serem explicitamente programados. Na análise de dados, o aprendizado de máquina é um método usado para conceber modelos e algoritmos complexos que se prestam à predição.2
A singularidade passou a abranger um ciclo cativante e intenso dentro da ficção científica contemporânea e, crucialmente, fora dela também. Pois, como conceito, transcendeu as fronteiras da narrativa da ficção científica e povoa os discursos de não-ficção do “mundo real”, científico e tecnocultural como um objeto de investigação séria, muito maior do que os vários confins em que começou.3
A análise da singularidade tecnológica necessariamente passa pelos ensinamentos de Raymond Kurzweil, autor do livro The Singularity is Near, um dos mais entusiastas desta teoria, e que se utiliza de princípios de evolução exponencial para fazer previsões que já se provaram verdadeiras, como quando afirmou que um computador conseguiria vencer o melhor enxadrista do mundo em uma partida até o ano 2000, o que aconteceu em 1997.4
Ray Kurzweil conceitua a singularidade tecnológica como “A future period which technological change will be so rapid and its impact so profound that every aspect of human life will be irreversibly transformed”.5 –6
Dito isso, vamos pensar na calculadora. Geralmente, essa máquina faz contas mais rápido que nós humanos, nesse sentido restrito a calculadora já faz cálculos com resultados inauditáveis por nós humanos, e tudo bem.
Tudo bem, mesmo?
O ser humano não consegue mais auditar os resultados, não consegue mais saber se a calculadora está fazendo contas corretas ou não, então percebam a singularidade acontecendo nas pequenas coisas.
O ponto de reflexão das ciências humanas vai para além do questionamento da provável existência da singularidade tecnológica, mas sim sua acessibilidade, ou seja, ela não é acessível para todo mundo da mesma forma. O problema de uma predisposição social de seleção e segregação e, assim, o acesso ou não a certo recurso torna o ser humano segregado e, via de consequência irá perecer. Ou seja, a singularidade nesse sentido passa a ser mais um catalisador de privilégios.7
Isso revela como a singularidade muitas vezes funciona como uma projeção do capitalismo tardio (pós 1945), que age sob a forma de um derivado financeiro. Quando perguntamos se você tem medo da inteligência artificial, também lhe convidamos a refletir na ideologia de bastidores. A inteligência artificial é, em resumo, um algoritmo que vai aprender por meio da interação com a humanidade. O algoritmo em si é neutro, sem consciência e sem vontades. Tais são características humanas, porém poderão as IAs serem instrumentos de segregação.
No entanto, a Singularidade também ocupa um espaço marxista – sua metáfora teleológica espelha a do marxismo clássico e um término histórico na utopia. Em última análise, a resposta de autores de ficção científica como Charles Stross, Cory Doctorow, KenMacloud e Rudy Rucker, entre outros, tratam a Singularidade como uma metáfora elástica submetido a escrutínio ideológico ao invés de uma inevitabilidade dogmática de exponencial historiografia.8
Sujeito a escrutínio, pois a singularidades não acontecem por si elas acontecem por meio da introdução de uma ideologia social, atualmente já existem máquinas que, em certa medida, dominam a humanidade: carro, avião, celulares, calculadoras. Vivemos isso no contexto pandêmico, a segregação e o perecimento de pessoas sem acesso à internet e tecnologias de comunicação. E para além, a morte de pessoas sem acesso ao saneamento básico.
Por isso, importante o convite à reflexão. A singularidade já existe? Somos totalmente dependentes de devices que não podemos auditar?
Se a singularidade tecnológica da inteligência artificial vir a ser uma super inteligência auto programável e se isso vai chegar ou não, sem dúvida amedronta. Porém, uma vez que venha, vai chegar da mesma forma para todo mundo? Vamos ficar só com medo da suposta existência da singularidade e não mostrar que o problema não é a singularidade, mas a desigualdade? Vamos continuar a condenar essas pessoas a morte?
O que, não raro fazemos é colocar a culpa em outras coisas, no Google, no Facebook, em empresas, na Inteligência Artificial. As empresas somente reproduzem lógicas que as pessoas manifestam. O potencial metafórico da Singularidade é amplo o suficiente para fornecer leituras de ambas as vantagens marxista e capitalista, mas, em última análise, para que servem nossas especulações quando que a própria metáfora da Singularidade, como seu homônimo no espaço-tempo, é de incognoscibilidade?
A barreira cognitiva absoluta que temos em relação a uma Singularidade é uma de suas poucas características comuns: a metáfora de Vinge da obstrução visual, de uma “parede opaca através do futuro” permanece a definição padrão.9
Fato é que a humanidade progride, porém sempre as custas de muitas vidas humanas, sempre. Vão acontecer muitas singularidades, vão acontecer pequenas extinções e se não valorizarmos a humanidade e ficarmos atentos a predisposição à segregação e se a singularidade acontecer ela vai provocar extinções? Sem dúvida, talvez o grande vilão a se temer não seja a singularidade tecnológica, mas a desigualdade e essa é a grande mensagem que as ciências humanas trazem pra gente…
____________________
Heloisa Helena de Almeida Portugal
Referências
________________________________________
1. ALVES, A. Notas sobre o Conceito de Singularidade Tecnológica. p. 14, 2008.
2. ALCOFORADO, F. Mundo Rumo a Singularidade Tecnológica. p. 7, [s.d.].
3. STEPHENS, P. The Technological Singularity: An Ideological Critique. p. 55, [s.d.].
4. ROHRSETZER, T. et al. 2045 – O ano em que a máquina e o homem serão um só: Uma discussão sobre singularidade tecnológica e inteligência artificia. Anais dos Encontros Nacionais de Engenharia e Desenvolvimento Social – ISSN 2594-7060, v. 14, n. 1, 1 dez. 2017.
5. Um período futuro onde as mudanças tecnológicas serão tão rápidas e seus impactos tão profundos, que todos os aspectos da vida humana serão irreversivelmente transformados” tradução livre.
6. KURZWEIL, R. A Singularidade está próxima. 1. ed. [s.l.] Itaú Cultural e Editora Iluminuras, 2018.
7. CURSINO, R. Naruhodo: O que é singularidade? – Parte 2 de 2., [s.d.]. Acesso em: 15 abr. 2021
8. STEPHENS, P. The Technological Singularity: An Ideological Critique. p. 55, [s.d.].
9. STEPHENS, P. The Technological Singularity: An Ideological Critique. p. 55, [s.d.].