A guerra muitas vezes é vangloriada no meio social, seja no cinema, na literatura, na arte ou na música. No entanto, para quem passou por tal experiência, em geral o sentimento é outro. A guerra deixa um rastro de destruição, traumas e leva embora diversas pessoas amadas.
Apesar disto, não é raro um Estado Nacional invocar justificativas para dar início a uma guerra. Ao criar uma sensação de insegurança em relação a um suposto “inimigo”, logo é propagada uma atmosfera de nacionalismo. Quem não se adequa ou participa do “esforço de guerra” é visto como um traidor, sujeito a todo tipo de restrições de direitos, e não raro sofre humilhações e violações físicas e emocionais. Em muitos casos, pode até mesmo acabar sendo executado.
O “esforço de guerra” mobiliza todos os setores da sociedade. Pais falam com seus filhos sobre “os inimigos da pátria”, alguns dos quais até então eram seus amigos, vizinhos ou colegas de escola.1 A maioria das religiões substituem a doutrina referente ao amor ao próximo pela oração em prol da vitória nos campos de batalha. Não raro, ministros religiosos abençoam exércitos e as igrejas se tornam centros de arregimentação de jovens, para incentivá-los a ir à guerra e, assim, matar pessoas (incluindo de sua própria religião), mas que são de uma nacionalidade ou etnia diferente.
Homens eletrizados pela ideia de viver uma aventura nos fronts, correm pelas ruas com bandeiras e cantos patrióticos. Muitos filósofos e biólogos justificam a guerra, alegando que a mesma é um fenômeno natural em nossa espécie, em decorrência de um suposto processo evolutivo. Também não deve ser ignorado o papel de muitos professores (incluindo os universitários), artistas, comediantes, médicos, advogados, promotores, magistrados, autoridades policiais, psicólogos e psiquiatras, todos envolvidos com a publicidade governamental efervescente da guerra.
Com o passar do tempo, pessoas queridas, bens e alimentos vão desaparecendo. Logo, o conflito começa a despertar as pessoas da loucura inebriante da propaganda nacionalista e, naturalmente, compreende-se a dura realidade da guerra. Para muitos seria a hora de parar, mas na visão de outros seria tarde demais para voltar atrás. O orgulho e as possíveis consequências de uma rendição (principalmente para as autoridades governamentais que “investiram” na guerra), faz com que o conflito continue em circunstâncias ainda mais desumanas.
O pior de tudo é que não raro as guerras também geram ódio nacional, étnico, racial e religioso, resultando em genocídios. Os mesmos deixam feridas abertas e marcam a história de vários povos, podendo resultar em sentimento de revanchismo, o que poderá, no futuro, gerar “genocídios de vingança”, como ocorreu no caso envolvendo croatas e sérvios no leste europeu.2
A história da humanidade já presenciou, e ainda sofre, com este ciclo de ódio. Por isso a necessidade de se compreender as temáticas da objeção de consciência, do direito à paz e a neutralidade política. Em muitos países os objetores de consciência ainda são vistos como um “inconveniente social” e são alvos de preconceito, chacota e zombaria. Em algumas situações, são presos e torturados (chegando até mesmo a serem mortos). No entanto, no plano internacional, a objeção de consciência já é reconhecida como um direito humano. A ONU já definiu o dia 15 de maio como o dia do objetor de consciência.
No que diz respeito a questão do serviço militar, há alguns aspectos legislativos que precisam ser trazidos a atenção. O “Pacto da Sociedade das Nações Unidas de 1919”, disciplinou logo no seu preâmbulo, que os Estados-Membros se comprometeriam a “aceitar certas obrigações de não recorrer a guerra”.3 No “Pacto de Paris” de 1928 (também chamado de “Pacto Briand-Kollog”), as partes envolvidas (incluindo o Brasil)4 disciplinaram que:
Persuadidos de que chegou o momento de se proceder a uma franca renúncia à guerra como instrumento de política nacional, afim de que as relações pacíficas e amistosas atualmente existentes entre seus povos, possam ser perpetuadas; Convencidos de que todas as mudanças nas suas mútuas relações só devem ser baseadas nos meios pacíficos e realizadas dentro da ordem e da paz e que toda Potência signatária, que, daqui em diante, procurar desenvolver os interesses nacionais recorrendo à guerra, deverá ser privada dos benefícios do presente Tratado…5
O preâmbulo da “Carta das Nações Unidas” indica logo na sua primeira frase o objetivo de “preservar as vindouras gerações do flagelo da guerra”.6 No mesmo sentido, em 12 de novembro de 1984 a Assembleia Geral da ONU promulgou a “Declaração Sobre o Direito dos Povos a Paz”. Nesta foi estabelecida, dentre outras coisas, que:
1 – Os Estado Nacionais têm o dever de garantir que os povos vivam em paz.
2 – O direito à paz é sagrado e, consequentemente, pode ser considerado um direito humano.
3 – Os Estados Nacionais devem adotar todas as políticas necessárias para eliminar as ameaças da ocorrência de guerras.
Assim, estes instrumentos legislativos servem como base tanto para o reconhecimento do direito à paz, como da objeção de consciência ao serviço militar e o direito à neutralidade política. O objetor jamais deveria ser visto como algo à margem da sociedade ou inferiorizado. O mesmo se aplica a um outro tipo de objeção menos conhecida: a questão da neutralidade em temas políticos.
Muitos debocham da ideia de que alguém possa ser politicamente neutro. Outros encaram tal postura como típica de uma pessoa covarde. Inclusive há inúmeros artigos criticando aqueles que vivem sob a luz desses valores, sem, contudo, entender o ponto de vista dos mesmos. É possível abstrair a falta de informação pela forma como a temática é abordada. Por isso essa questão será explicada.
O fato é que numa sociedade pluralista existem pessoas que podem ou não se identificar com alguma área do conhecimento ou atividade humana. Alguns são religiosos e outros não. Há os que se interessam por determinados esportes, dietas, estilos musicais, literatura, cinema, enquanto outros podem não ter nenhum interesse em tais assuntos. No geral, essa realidade é encarada de forma natural.
No mesmo sentido, existem pessoas que não têm interesse ou não se simpatizam por nenhuma ideologia política. Aqui se aplicam algumas hipóteses, para tal posicionamento: pode ser que a pessoa entenda que possa contribuir com a sociedade em outros campos de atuação, mas não na política. Algumas não sentem convergência de pensamento com nenhuma das correntes político-ideológicas. Outros se decepcionaram ao passar por experiências ruins no referido contexto e simplesmente não querem mais se envolver com tal esfera. Crenças religiosas, filosóficas ou comprometimento ético-profissional podem fazer a pessoa optar pela neutralidade política. Assim, não se tratam de pessoas covardes, acomodadas ou indiferentes. Deveria ser naturalmente compreendido como uma opção pessoal a ser tutelada pelo ordenamento jurídico, sob a égide do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana (no Brasil, positivado no art.1º, III, C.F.).
Em alguns países aqueles que não se filiam ao partido político que está no poder ou se recusam a participar de campanhas políticas em prol de determinados candidatos, sofrem pressão e sabotagem em seu ambiente de trabalho (tanto público, quanto privado). Outras formas de pressão são a negativa ou exclusão de benefícios sociais, perseguição aos negócios, espionagem e tipificação criminal como extremista ou terrorista, acompanhada de reclusão.7
Para finalizar, é interessante refletir na frase do físico alemão Albert Einstein: “As guerras só irão acabar quando as pessoas se negarem a ir para a guerra”. Vivenciar isso, ainda que na vida pessoal, é um sonho do objetor de consciência, num mundo que parece sentir cada vez mais prazer em matar do que em viver.
Referências
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1. Apenas como exemplo: no genocídio de mais de 800.000 pessoas da etnia “tutsi” em Ruanda (no período de abril a julho de 1994), por parte da milícia Interahamwe hutu e seus colaboradores, muitas pessoas foram mortas por seus vizinhos, colegas de trabalho e até então amigos.
2. Durante a II Guerra Mundial os croatas regidos pelo USTASHE (regime católico aliado ao nazismo) praticou genocídio contra a população sérvia ortodoxa. Na década de 1990, durante a desintegração da Iugoslávia, o governo iugoslavo (dominado pelos sérvios e que recebeu apoio soviético durante a guerra fria), praticaram o mesmo em relação a população croata – este é o genocídio de revanche ou vingativo.
3. Preâmbulo na íntegra: “As Altas Partes Contratantes, considerando que, para o desenvolvimento da cooperação entre as nações e para a garantia da paz e da segurança internacionais, importa aceitar certas obrigações de não recorrer à guerra, manter abertamente relações internacionais fundadas sobre a justiça e a honra, observar rigorosamente as prescrições do direito internacional, reconhecidas doravante como norma efetiva de procedimento dos governos, fazer reinar a justiça e respeitar escrupulosamente todas as obrigações dos tratados nas relações mútuas dos povos organizados, adotam o presente Pacto, que institui a Sociedade das Nações”. Fonte: link.
4. O Brasil aderiu a este Pacto por meio de Decreto 24.557/34.
7. Por exemplo: na Rússia as Testemunhas de Jeová (objetores de consciência, por neutralidade política e não participação na guerra) estão banidas desde 2017 e seus membros (incluindo idosos) tem suas casas invadidas por soldados encapuzados do Serviço de Segurança Federal (FSB), portando metralhadoras. Inclusive idosos e enfermos estão sendo presos e tendo atendimento médico negado. A Corte Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) já condenou a Rússia e determinou o retorno da liberdade religiosa das Testemunhas de Jeová. Porém, o governo russo se retirou da CEDH e se nega a cumprir a decisão. Para mais informações: link.