Lei do passe e a volta ao passado

Lei do passe e a volta ao passado

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Está em tramite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3353 de 2021 que visa a recriação do instituto do passe, visando:

“valorização dos clubes de futebol brasileiros, pela reconstituição do chamado “passe”, importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas pertinentes.”

Sob a alegação de que a extinção do passe pela Lei Pelé teria facilitado a transferência de jogadores de futebol e favorecido a interferência dos intermediários, seria necessário recriar o antigo vinculo existente entre clubes e atletas, para que os times de futebol pudessem manter seus jogadores.

Antes de analisarmos a propositura da lei é preciso realizar uma breve contextualização da relação clube a atleta ao longo do tempo em nosso país, desde o surgimento da figura do passe, até a transformação em direitos econômicos e federativos.

É no Decreto-lei 5342/1943, que pela primeira vez se regulou a prática esportiva profissional, estabelecendo a necessidade da existência de contrato entre o clube e atleta, bem como faz menção a transferência dos atletas de uma instituição esportiva para outra, prevendo restituição ou indenização por essa transação, sendo tal indenização pela transferência o popular “passe”.

Posteriormente o Decreto 53.820 de 1964 irá regular a profissão de jogador de futebol, lhe trazendo alguns direitos anteriormente inexistentes, como a necessidade de sua concordância em caso de transferência de um clube para outro, assim como a necessidade do pagamento de passe caso outra equipe estivesse interessada na contratação do jogador, e o Decreto 53.820 também estabeleceu que os jogadores também passassem a ter direito a 15% dos valores do passe recebido por sua própria transferência.

A Lei 6354/1976 versa sobre a relação de contrato entre o atleta profissional e o clube, regulando por definitivo a figura do Passe, descrita em seu artigo 11 da seguinte forma

O vínculo empregatício entre atletas e clubes possuía a peculiaridade de mesmo que não havendo vigência de contrato de trabalho entre ambos ainda sim a entidade de prática desportiva era a “dona do passe” daquele jogador, podendo inclusive proibi-lo de se transferir para outras equipes, o que garantia aos clubes enorme poder sobre o exercício da profissão do atleta, tal realidade perduraria muitos anos, até que um jovem e desconhecido jogador belga mudaria por completo a estrutura do futebol.

O ano era 1990 e o contrato de Jean Marc Bosman então jogador do Royal Club Liegois, estava chegando ao fim, momento em que o jogador receberia uma proposta de renovação de contrato, porém os valores não lha agradaram e o atleta demonstrou interesse em se juntar a equipe francesa Dunkerque.

Detentor de seu “passe” o Royal exigiu uma compensação financeira ao Dunkerque, valores com os quais os franceses não possuíam condições de arcar, deixando Bosman em um limbo, visto que seu passe estaria preso a equipe belga mesmo não estando vigente nenhum contrato de trabalho.

Diante desta situação Bosman acionou a Corte Europeia de Justiça alegando estar impedido de trabalhar, visto que a equipe que detinha seu passe não lhe liberava para atuar por outro clube.

A Corte Europeia acatou o argumento de Bosman gerando o entendimento de que o vínculo entre atleta e o clube se encerraria no momento em que o contrato de trabalho se encerrasse, afetando todo o futebol mundial, inclusive o Brasil que aderiu ao novo modelo por meio da Lei Pelé (Lei 9615/1998), que assim dispôs

Art 28 § 5º O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais:

I – com o término da vigência do contrato ou o seu distrato;

II – com o pagamento da cláusula indenizatória desportiva ou da cláusula compensatória desportiva;

III – com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei;

IV – com a rescisão indireta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e

V – com a dispensa imotivada do atleta.

Como podemos ver, a Lei Pelé estabeleceu que o vínculo desportivo do atleta se tornou acessório ao vínculo trabalhista, na prática quando o contrato do atleta com o clube se encerra este esta livre para assinar contrato com outro time, é dessa transformação que os conceitos de direitos econômicos e direitos federativos vem a tona, sendo direitos econômicos os valores que o clube e o atleta  receberiam pela sua transferência para outro clube enquanto vigente seu contrato de trabalho, e os direitos federativos correspondem ao direito de um clube registrar o atleta nas federações e o utilizar em competições.

Feito esta contextualização voltamos a analisar o Projeto de Lei 3353/2021 que tem como principal justificativa o fato de os clubes supostamente investirem dinheiro na formação dos atletas e que ao final do contrato não receberiam qualquer compensação por isso.

Porém ao contrário do defendido no retrógado projeto de lei, a extinção do passe além de reconhecer direitos trabalhistas básicos do atleta de futebol trouxe aos clubes em especial aos clubes formadores que possuirão direito a parte das transações dos atletas que passaram por sua categoria de base, mesmo no caso de negociações envolvendo outros times.

Modificar o regimento nacional em total contradição com os demais países em um estágio em que a economia do futebol está bem integrada com as principais ligas do mundo seria um completo salto no escuro de consequências inimagináveis e de enorme insegurança jurídica para as futuras transações e para os direitos dos atletas.

Em um momento em que a Lei das Sociedades Anônimas do Futebol começa a surtir seus efeitos, os mesmos legisladores que a propuseram buscando modernização e uniformização com as práticas ao redor do mundo, agora propõe uma lei na mesma área visando retroceder no tempo, voltando a um modelo arcaico de relação entre clubes e atletas.

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Rafael Inácio da Silva Caldas

Advogado, especialista em Negócios no Esporte e Direito Desportivo

 

Referencias

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https://bit.ly/3Rc9qaR

https://bit.ly/3WH2IL2

https://bit.ly/3wu5OYp

https://bit.ly/3XEMpzW

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