“Lixo”, “monstro” e “anormal”: notas sobre a dissimulação “civilizatória” das políticas de extermínio

“Lixo”, “monstro” e “anormal”: notas sobre a dissimulação “civilizatória” das políticas de extermínio

racismo

Na última quarta-feira, dia 12 de outubro, eu fui confrontado pelo racismo: um homem argentino, tão racializado quanto eu pelas lentes da branquitude como um sistema político que se nutre e retroalimenta a memória e a hegemonia colonial, se sentiu autorizado a me desumanizar, no instante em que eu defendia um irmão (um segurança que fazia o seu trabalho), me chamando de “macaco”. O que esse sujeito latino-americano (racializado) parece desconhecer, ou dissimular, é a sofisticação com que o discurso racial foi e ainda é construído, como técnica e arquivo político forjado para naturalizar a violação dos sujeitos lançados às fronteiras da humanidade.

O que se dissimula nessas relações de violência é a localização. A perversidade se materializa quando observamos: sujeitos racializados enquanto latino-americanos acreditando — por meio da sua brancura provisória (pois ela se esvanece diante de um corpo norte-global) — na taxonomia política, animalizante e degradante do racismo; pessoas em vulnerabilidade econômica que se sentem mais próximas do ideal de humanidade circulado pela ciseterobrutalidade, por se considerarem mais legítimas enquanto vida do que corpos LGBTQIAPN+; ou quando percebemos que no interior das relações de gênero, perpassadas pela classe e pela raça, a atualização de sistemas assimétricos como, por exemplo, as cenas onde mulheres brancas e privilegiadas economicamente intensificam distâncias políticas em relação às mulheres negras, ou em outra lente: quando homens negros ciseterossexuais reproduzem um circuito de ódio contra homens negros gays.

Nesses dois casos a classe, a brancura e a ciseteronorma podem ser utilizadas para justificar a marcação e a injúria, mas são provisórias, enquanto o sexismo e o racismo se manifestam como estruturas históricas, culturais e politicamente forjadas para ampliar a distância entre “humanos” e “não-humanos”. Assim, a lógica perversa da política de extermínio é responsável por fazer com que nós nos observemos como inimigos e não as estruturas. Trata-se de uma atualização da barbaridade e do gozo em ver sujeitos animalizados pelos projetos políticos de dominação, se digladiando.

Eu insisto em dizer que o racismo é uma tecnologia justamente por considerar que a raça, em sua formulação moderna, é produto das relações significadas para destruir a diferença. Ocorre que, no fim das contas, não há salvação para nenhum corpo que insista em justificar, reproduzir ou validar as normas e os enquadramentos coloniais, pois eles são molduras de mundo manchadas de sangue. Embora a masculinidade e a classe me aproximem do meu algoz; ao me animalizar, a sua intenção foi remontar as lógicas médico-científicas que, no cerne da criminalização, patologização e desumanização de corpos negros, justificaram a brutalidade do racismo científico, algo que ainda perpassa o imaginário social brasileiro.

No entanto, não sou qualquer “monstro”! Eu venho da escola de Lélia Gonzales, minha mais velha que, ao enfrentar o racismo e o sexismo, percebe o quanto essas lógicas fazem com que mulheres negras sejam significadas como “lixo”. Todavia, os processos de aliança e de resistência fazem com que o lixo fale, recuse o lugar da subalternidade imposto e fale “numa boa”! Sou da escola de Paul Preciado, meu irmão “monstro” que  — ao enfrentar as máximas psicanalíticas que constroem desde o século 19 a “anormalidade” de corpos T — afirma preferir a condição de “monstro” do que as jaulas formadas pela naturalização das assimetrias de gênero,  desníveis promovidos por meio dos arquivos políticos que pretendem justificar a violência, como um destino.

Nós somos significados/as, diante da retina ciseteronormativa, da branquitude e dos fetiches de poder, “lixos”, “monstros” ou “anormais”. Não importa, sinceramente, pois nós sabemos que todas essas categorias são fabricadas, no fim das contas, para fortalecer uma identidade torpe, imoral, fragilizada e tão podre que dissimula a sua real monstruosidade significando e violentando o “outro”. Nesses termos, assumo a condição de monstro pois, nesse caso, ela é mais ética do que a humanidade forjada e atualizada pela sobreposição, pela hierarquização e pelo genocídio, marcas fundamentais do processo “civilizatório” da modernidade.

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Thiago Teixeira

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