Foram vinte e dois tiros! Vinte e dois tiros que marcam a execução de Mãe Bernadete, Ialorixá e líder quilombola. O seu extermínio traduz o interesse brutal que se interpõe contra corpos lidos à distância da norma. Os graus de letalidade se intensificam e se complexificam quando observamos as mobilizações políticas de terror que são acionadas contra uma mulher negra, de axé, uma Ialodê — referência direta à chefia feminina em altos escalões da política na tradição iorubá. Assumindo que o corpo é significado nas dinâmicas políticas, a humanidade de corpos lidos à distância da norma é transferida para as fronteiras, para territórios inóspitos e, assim, somente assim, na dinâmica da banalidade, podem ser desabilitados, atendendo aos interesses coloniais que se atualizam na contemporaneidade.
O contrato colonial, pacto político entre sujeitos que se enunciam como norma, é reflexo de uma sequência de poderes econômicos, políticos, epistêmicos, territoriais e bélicos, que se entrecortam para circunscrever os limiares do que pode ser reconhecido. Mãe Bernadete tinha 72 anos e era líder religiosa da comunidade Pitanga dos Palmares e da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Sua relevância política como mulher negra, de axé e ativista, constrange o pacto, o contrato colonial que historicamente se comprometeu com a formação de imagens injuriosas de sujeitos negros, de mulheres negras e de pessoas de axé. Sua presença desmantela as representações de mundo que asfixiam a humanidade de sujeitos negros e revela que, além do projeto colonial, quando nos movemos alteramos não só as imagens produzidas, mas a materialidade operacionalizada pelas estruturas e poderes brancos, masculinos e ciseterobrutais, que desprezam em alto grau a diferença. A política da diferença, que dialoga e é combativa, desestabiliza a norma que, como sabemos, é fruto de operações sofisticadas de poder que tencionam, de modos multidimensionais, perpetuar a sua lógica de dominação.
Os pactos políticos no Brasil estão manchados com o sangue negro e indígena. É de conhecimento público também que a colonização, enquanto projeto político, se atualiza na composição de novas invasões territoriais, culturais e na transformação sistêmica de corpos lidos como dissidentes em novas colônias, administradas pelas normas de gênero, de raça, de sexualidade, etc. Embora o projeto colonial, ainda em curso, tenha como propósito a desumanização e a colonização dos nossos corpos e que a necropolítica se instale como método contra corpos dissidentes, a memória, a aliança e a margem, como nos ensina bell hooks, são instrumentos de fortalecimento. São ferramentas que nos colocam combativos, uma vez que fazem com que abandonemos os paradigmas coloniais que nos ensinam o auto-ódio e nos permitem, numa política do afeto, odiar as estruturas que tencionam nos aniquilar. Em nome da memória, da ancestralidade e da força política que constrange e desmonta o projeto colonial, nós afirmamos: mãe Bernadete, presente!