O racismo funciona como uma técnica bem articulada de desidratação das humanidades. As suas prerrogativas encontram sentido no mais profundo ambiente hostil e fantasmagórico, na construção do outro, enquanto carne abjeta, infame e suscetível ao extermínio, simbólico ou não. A distinção entre carne e corpo fica evidente nos contornos do racismo que, a partir de suas técnicas sofisticadas de subordinação, constrói teias pelas quais se entrelaçam presenças políticas desfazendo as suas potencialidades. A carne, em distinção ao corpo, está exposta, transmutada em alvo e facilmente consumida pelas políticas discriminatórias. Desfazer o corpo, em nome da produção da carne, é um dos propósitos mais vis do racismo, bem como das demais estruturas de violação, como a ciseterobrutalidade — sistema político que demarca as trincheiras do humano na ciseteronorma e que banaliza as vidas de sujeitos LGBTQIAPN+ —, o capacitismo e o classicismo, por exemplo.
Há, nas atmosferas político-sociais que aventam os princípios modernos e coloniais do racismo antinegro, uma posição de alerta e de controle às manifestações de autonomia, prazer, liberdade, consciência e agrupamento de sujeitos negros. Essa posição está diretamente ligada à gramática colonial que não suporta a presença de sujeitos negros desarticulada das narrativas de subordinação. O processo de racialização, por ser normativo e ideológico, apresenta caráter pedagógico. Isso quer dizer que, no fim das contas, aprendemos, todos/as sem exceção, a observar a realidade, o corpo e as relações por meio das métricas da brancura ciseterobrutal. Logo, ora sujeitos negros aprendem a compreender a si mesmos pelas métricas da hipersexualização, ora tentam evadir desse lugar, mas assumindo outra cadência de percepção: a despotencialização do corpo. Aqui estamos diante de dois processos orquestrados pelo racismo antinegro: hipersexualização e despotencialização. Ambas as estruturas são circunscritas pelo interesse de fechar o cerco da humanidade nos limites da brancura. Logo, aos sujeitos negros resta, no cenário imagético, político e normativo, a objetificação do seu corpo que, tornado carne, serve para o prazer, mas não pode ter prazer.
Há, nesses termos, um circuito destrutivo que se ancora na comparação entre a humanidade, lugar de afirmação das potencialidades, e a desumanidade que, em termos multiarticulados, não pode ser nada além de carne. Ocorre que as perspectivas antirracistas e contrárias aos sistemas de violação naturalizados pela memória colonial estão interessadas em corroer todas as práticas, lógicas e sentidos que naturalizam o rechaçamento de corpos, intelectualidades e potências negras; rechaçamento que assume as premissas pornográficas do processo de colonização, isto é, a exposição radical e esvaziada de humanidade dos sujeitos lidos como dissidentes. Em contraponto às políticas de extermínio e sua fetichização pornográfica do corpo, assumimos uma ético-erótica, isto é, a forma política de contestação da imagem pública de objetificação dos corpos, prazer e potencialidades negras, a fim de que sejamos capazes de romper com os estatutos que borram, em nome da norma, as possibilidades de existir, de nos amar e de, nessa política do afeto e da aliança, nos reconhecer, de fato.