MARIAS, MADALENAS: empregadas domésticas no Brasil sem salário e reconhecimento.

MARIAS, MADALENAS: empregadas domésticas no Brasil sem salário e reconhecimento.

madalena santiago da silva de costas

O presente artigo propõe uma análise a respeito da incidência da exploração do trabalho feminino que  possa ser identificado como “trabalho escravo contemporâneo”1.

O Ministério Público do Trabalho publicou no ano de 2023 um levantamento sobre o trabalho escravo  intitulado Escravidão na interseccionalidade de gênero e raça: um enfrentamento necessário, haja vista que, o trabalho realizado em condição análoga à de escravo, sob todas as formas, constitui atentado aos direitos humanos fundamentais e à dignidade do trabalhador. Em setembro de 2021, a Inspeção do trabalho alcançou a marca de 56.722 trabalhadoras e trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo2no Brasil.

Apesar da política pública de combate à escravidão contemporânea ter iniciado em 1995 no Brasil, infelizmente novas formas de exploração que violam normas básicas de direitos humanos ainda surgem em várias atividades econômicas e, mais recentemente, no trabalho doméstico. Esse tipo de exploração, oculta nos lares brasileiros há anos, apresenta características próprias, principalmente o perfil social das vítimas, as quais possuem histórias de vida e vulnerabilidades muito semelhantes (Brasil, 2023).3

A Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888  no Brasil, teoricamente tinha por finalidade arrebentar as correntes que prendiam corpos negros à escravidão. Mesmo liberto, o ser negro permaneceu (in)visibilizado socialmente,  sendo-lhe negada a condição de cidadão. Não houve amparo estatal para a população negra brasileira após a abolição da escravidão, de forma que esta não teve acesso a condições básicas de existência, como moradia, saúde, e educação.  A análise das condições preexistentes de exclusão amparam a teoria estabelecida por Berenice Bento (2018); de que o processo brasileiro de exclusão social não é apenas necropolítico4, mas necrobiopolítico.

Na perspectiva da necrobiopolítica, proposta por Berenice Bento (2018), o Estado brasileiro realiza uma cisão biológica dos corpos matáveis desde a sua fundação e a mantém até hoje, por meio do medo como elemento perpetuador das exclusões. Segundo Bento, “O Estado vai reestruturar de forma permanente o medo, nos termos em que os interesses históricos exigirem.” (Bento, 2018, n.p). Hoje, o ser negro feminino ainda continua sendo vítima do racismo institucional e estrutural. Relegados aos espaços de poucas oportunidades de trabalho, os corpos negros femininos  na contemporaneidade ainda são associados  a trabalhadoras sem direitos e sem salário. como no caso retratado abaixo:

Uma trabalhadora doméstica de 68 anos, analfabeta, trabalhava sem salário e sem folga há 8 anos, além de ser vítima da sua própria ignorância sobre seus direitos, conforme consta do relatório da Inspeção do Trabalho:

A vítima, […], conhecia a família da empregadora, […], há quase trinta anos. Inicialmente, a Sra. […] e seu esposo, quando vivo, trabalharam para o pai da empregadora, […]. Eles laboravam e moravam na fazenda Córrego da Fartura, no município de Rubim/MG. Com o passar do tempo, foram morar no distrito de Itapiru, habitavam uma casa na Vila Cruzeiro, […], sendo que o marido continuava a trabalhar na fazenda. Após a morte do esposo, em 2008, a Sra. […] devolveu a casa […] e foi morar e trabalhar como doméstica na casa da Sra. […], tendo residido, juntamente com sua patroa, inicialmente em uma casa em Almenara e depois em uma casa no distrito de Itapiru, em Rubim/MG. […] não tendo outra residência para morar, nem alternativa de vida, restou-lhe trocar seus serviços pelo abrigo ofertado […]. Durante esse período, foi concedido pelo INSS […] uma pensão por morte, em virtude do falecimento de seu marido. Tal fato, diante do desconhecimento sobre leis da trabalhadora, fez com que ela devotasse enorme gratidão à empregadora […], imaginando ter sido ela a responsável pela concessão do benefício (Brasil, 2023).

Analisar a prática de discriminação contra um determinado grupo social é buscar, percorrer um caminho que perpassa atos, divisões de classes, e preconceitos.  Segundo Almeida (2019,p.14), o preconceito racial é “o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e que pode resultar em práticas discriminatórias”.

Percorrer o caminho da senzala ao preconceito racial é metaforizar diferenças, discriminações raciais e particularidades de uma realidade vivenciada por determinados sujeitos. Escravidão era a forma de trabalho adequada ao sistema colonial, porque somente através da exploração do trabalhador escravo, com nível de coerção social despótico e constante, poderia gerar lucros, visando o enriquecimento do senhor e a constante exploração do escravo, analogicamente comparado a um objeto, e, portanto, invisível socialmente.  “[…] a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e cultural” (Domingues, 2007).

De forma inédita, em 10 de julho de 2017, uma das equipes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)5 iniciou ação fiscal no município de Rubim/MG para verificação de denúncia de submissão de uma trabalhadora doméstica a várias violações de direitos. “Conforme consta do Relatório de Fiscalização da Operação 63/2017, o Ministério Público do Trabalho da 3ª Região, promoveu junto à Vara do Trabalho de Almenara/MG”. (Brasil,2023).

Mas o caso que mudou a história do combate ao trabalho escravo doméstico ocorreu ao final de 2020, com o resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano em Patos de Minas/MG, a Inspeção do Trabalho constatou que ela tinha sido submetida à condição análoga à de escravo ao longo de 38 anos. Segundo o depoimento coletado pelos auditores-fiscais do trabalho, a trabalhadora relatou que o contato com a ex-empregadora começou aos 8 (oito) anos, quando ela bateu em sua porta para pedir comida: “Fui lá pedir um pão, pois eu estava com fome. Ela falou que não me dava se eu não morasse com ela”. Ainda quando criança, ela foi proibida de frequentar a escola. Nunca recebeu salário regularmente ou conforme as leis trabalhistas: “Me dava R$ 200 ou R$ 300 por mês”, disse. Desde a implementação do sistema de seguro-desemprego especial para trabalhador resgatado, em 2003, esse caso figurou como aquele em que houve o maior tempo de exploração do trabalho (Brasil, 2023).

A escravidão foi, por excelência, a primeira experiência biopolítica (Mbembe, 2018), e seus efeitos acompanham a pele negra até os dias de hoje, sendo ressignificada época após época em novas bases de opressão. Ser alheio a essa condição de exclusão é perpetuar uma dor que há muito não se sara.  A mulher negra sai da cozinha da casa grande e se instala na cozinha das sinhazinhas, que perpetuam a sua exploração.

Nos 9 meses seguintes ao resgate de Madalena Gordiano, o número de vítimas resgatadas no país foi cinco vezes maior que em 2020 e o número de ações fiscais voltadas para o combate ao trabalho escravo doméstico subiu de 4 para 30 em 2021, ou seja, um aumento de mais de sete vezes. Tomando o total de 27 pessoas resgatadas de trabalho escravo doméstico de 2017 a 30/9/2021, São Paulo é o estado com mais resgatadas (8), seguido de Minas Gerais (7), Bahia (5), Goiás (3), Rio de Janeiro (2), Pará (1) e Roraima (1), sendo aproximadamente 75% dos casos em residências urbanas. Apesar da proporção histórica de mulheres resgatadas ser de 6% em todas as atividades econômicas, no trabalho doméstico é de 80%. Gênero é o único parâmetro do perfil social que se diferencia totalmente no trabalho escravo doméstico, os demais guardam certa relação com o perfil de todas as vítimas (Brasil, 2023).

O artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, sempre esteve suspenso para as Marias e Madalenas, muito antes do advento da Constituição Cidadã. Isso ocorreu e continua ocorrendo por meio de um poder soberano, já que “[…] a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é.” (Mbembe, 2018, p. 41). Por isso é tão necessário lembrar que as mulheres negras empregadas domésticas são merecedoras de reconhecimento profissional e de um salário digno e não serem lidas como meras “pessoas” da família” sem a garantia dos devidos direitos.

O ser negro feminino, ao final da escravidão, sai da cozinha da casa grande para a cozinha da família branca elitizada; da senzala para um quartinho no fundo da casa; de ama de leite e cuidadora dos filhos da sinhá, para babá; e o trabalho doméstico passa a se configurar como seu meio de sobrevivência. Neste contexto, o trabalho doméstico é marcado por relações de dominação e opressão, de gênero e raça, perpetuando a existência invisível do ser negro.

Ademais, hodiernamente, ainda registra-se casos de empregadas domésticas sujeitas ao trabalho análogo à escravidão: sem salário, sem reconhecimento, cuja existência é confiada aos desejos dos patrões.

A história da doméstica Madalena Santiago da Silva resgatada por Auditores-Fiscais do Trabalho da Superintendência Regional de Trabalho na Bahia (SRTb/BA), no mês de março, é um grito às autoridades para que, além das questões trabalhistas, patrões respondam por outros crimes e se responsabilizem pela restauração de danos que afetam a vida de milhares de trabalhadores brasileiros que ainda vivem em condições análogas à escravidão. A mulher, negra e pobre, viveu 54 dos seus 62 anos trabalhando sem direito a descanso, salário, férias, décimo terceiro e, para agravar o quadro, era vítima de racismo. Madalena Santiago foi retirada da casa dos pais aos oito anos de idade. Desde então, passou a viver com os patrões no município de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, na Bahia.Durante sua rotina de serviços e por todo o período em que viveu com a família, a empregada era constantemente humilhada por causa da cor de sua pele. A mulher, que nunca estudou, contou aos Auditores-Fiscais que sequer saía sozinha na rua, fato que hoje, mesmo livre, a impede de levar uma vida normal,  “A família se aproveitava de sua baixa autoestima. Os maus-tratos raciais a inferiorizaram tanto que, hoje, ela sequer consegue tomar um ônibus”, relatou a Auditora (Fausta, 2022).

Os tratados, os pactos, as declarações e as convenções internacionais de proteção aos direitos humanos enfatizam  que o trabalho escravo, pelas condições degradantes em que se desenvolve, consistiria em grave forma de violação de tais direitos. No mesmo teor, as constituições dos países democráticos repudiam veementemente tais práticas. No direito brasileiro consagra-se o repúdio ao trabalho escravo desde a Constituição de 1988, (art. 5º, incisos III, XIII, XV, XLVII e LXVII) até a atual redação dos artigos 149, 197, 203, 206 e 207, do Código Penal, além de todas as normas internacionais ratificadas e internalizadas.

Apesar da identificação de casos e de resgates de trabalho escravo doméstico terem ocorrido recentemente, é lamentável reconhecer que as situações encontradas eram as que possuíam maior tempo de exploração já registrado (em comparação à história de combate ao trabalho escravo no país). Além das histórias de vulnerabilidade social muito semelhantes, não foram diferentes as dificuldades para resgatar essas vítimas, que passaram tanto tempo com seus direitos humanos mais básicos violados.  Se na maioria dos casos de exploração em que se exigia maior resistência física e força muscular  os homens foram as maiores vítimas, o trabalho escravo doméstico é imposto sobretudo para mulheres, a partir de um pressuposto colonial de que as atividades domésticas são atribuições predominantemente femininas.

 

Referências

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ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólem Livros, 2019.

BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, n. 53, 2018. Disponível em: site. Acesso em: 10 mai. 2025.

BRASIL, 2023. site. Acesso em 08 ag.2025

DOMINGUES, P. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. site. Acesso em 14.ag.2025.

FAUSTA, Cristina. Madalena: A escravidão nas senzalas modernas das grandes cidades. SINAIT,2022. site. Acesso em 14.ag.2025.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

 

Notas

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1. O início da política pública de combate ao trabalho escravo ocorreu com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que atua em todo país e este ano completou 26 anos de existência. Coordenado pela Auditoria-Fiscal do Trabalho (Inspeção do Trabalho), parcerias institucionais foram formadas ao longo do tempo. Participam das operações do GEFM a Polícia Federal (PF), a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Defensoria Pública da União (DPU), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério Público Federal (MPF). A criação do GEFM em 1995 foi ato contínuo ao governo brasileiro admitir a existência de trabalho escravo no país perante a comunidade internacional. De resposta a uma pressão internacional, a história do combate ao trabalho escravo no Brasil passou a ser referência, reconhecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como um modelo de boa prática para outros países. (Brasil, 2023).

2. Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a trabalho forçado; jornada exaustiva; condição degradante de trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; retenção no local de trabalho em razão de: cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; manutenção de vigilância ostensiva e apoderamento de documentos ou objetos pessoais. Este é o conceito que esculpe a visão moderna sobre em que consiste o fenômeno da escravidão contemporânea e que supera a noção restritiva de mero cerceamento de liberdade. (Brasil, 2023).

3. http://trabalho.gov.br/noticias/7004-estudo-internacional-apresentado-em-bogota-elogia-combate-ao-trabalho-escravo-no-brasil.

4. é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Com base no biopoder e em suas tecnologias de controlar populações, o “deixar morrer” se torna aceitável. Mas não aceitável a todos os corpos. O corpo ”matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça. (Mbembe,2018).

5. A criação do GEFM em 1995 foi ato contínuo ao governo brasileiro admitir a existência de trabalho escravo no país perante a comunidade internacional. De resposta a uma pressão internacional, a história do combate ao trabalho escravo no Brasil passou a ser referência, reconhecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como um modelo de boa prática para outros países. As violações de direitos humanos tão recorrentemente vistas no campo, denunciadas desde a década de 1970 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a partir de 2002 começam a ser descobertas também no ambiente urbano. Com a promulgação da Emenda Constitucional 72/2013 e a sua posterior regulamentação por meio da Lei Complementar n.º 150/2015, o trabalho doméstico ganhou visibilidade jurídica e em 2017 ocorreu o primeiro resgate de trabalho análogo ao de escravo doméstico. (Brasil,2023).

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