Consoante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2024 o Brasil registrou crescimento de feminicídios e nas mortes de crianças e adolescentes, de modo incongruente com a queda nas mortes violentas em geral, que recuaram 5,44%. O estudo, realizado desde 2011, mapeou registros criminais realizados anualmente pelas secretarias de segurança pública dos 26 estados e DF.1
O Mapa Nacional da Violência de Gênero, por seu turno, discriminou que no primeiro semestre de 2025, foram registrados 718 feminicídios no país, além de 33.999 estupros contra mulheres, de janeiro a junho, com média de 187 por dia2.
A corroborar o aumento de incide de violência contra a mulher nos últimos anos, igualmente se posicionou o Atlas da Violência 2025 do IPEA3.
Diuturnamente tomamos conhecimento de episódios de violência doméstica com caracteres dos mais variados, com frequência resultantes de motivos fúteis , praticados majoritariamente por cônjuges, companheiros ou ex-maridos e ex-companheiros, contra pessoas do gênero feminino.
A violência de gênero é fenômeno estrutural e não obstante as políticas públicas que já estão sendo implementadas, embora de modo insuficiente ainda, subsiste em sua força brutal de ceifar vidas e comprometer o futuro de crianças, órfãs do feminicídio.
Relevante, então, que reste expressamente consignado o fato de que a violência contra a mulher não pode ser alçada à categoria de banalidade. Não é porque há nítido crescimento da prática da aludida violência enquanto fenômeno social, que a reprovabilidade das condutas peculiares àquela deve ser atenuada. Jamais violência será algo passível de tolerância, com a ressalva das causas excludentes de ilicitude previstas em lei.
Dentro desse renitente e deprimente contexto, impõe-se a reflexão sobre episódio ocorrido recentemente na zona rural de Coroaci, no leste de Minas Gerais, por envolver aspectos bastante relevantes quanto à parentalidade e omissão no estabelecimento de políticas públicas de prevenção do alcoolismo enquanto doença crônica e multifatorial, assim considerada pela Organização Mundial da Saúde, atentando-se à licitude da comercialização sem controle de tais substâncias, com instituição de indústria extremamente lucrativa, a estimular a utilização viciosa e deletéria.
No dia 02 de novembro uma mulher de 41 anos foi presa em flagrante após matar o companheiro a facadas. A Polícia Militar, que atendeu a ocorrência, descreveu que a autora do ato declarou haver cometido o delito após ser agredida física e sexualmente pela vítima, com quem mantinha união estável. A Polícia Militar acrescentou que o casal estava embriagado quando começou a discutir; em meio à briga, a mulher pegou uma faca e atingiu o homem na região do peito. Testemunhas narraram que a mulher sofria agressões constantes e já havia buscado ajuda de vizinhos em outras ocasiões. Os policiais disseram, por fim, que os dois filhos do casal correram até a casa de um vizinho chorando e disseram que a mãe havia matado o pai. Ao chegarem no local, os policiais encontraram a mulher em frente à casa, com as roupas sujas de sangue e sob efeito de álcool. Ela teria confessado, ao declarar: “matei mesmo, cansei de apanhar”. Segundo a mesma, o companheiro tentou forçá-la a manter relações sexuais e, ao se recusar, foi agredida. Em autodefesa, pegou faca e golpeou a vítima, cujo corpo apresentou duas perfurações, uma no peito e outra, nas costas4.
A primeira reação que temos ao ler o conteúdo da notícia delitiva é de pesar pelos filhos do casal. A cena brutal foi presenciada pelos menores, que correram para fora da residência em busca de auxílio de vizinhos.
Até onde a violência doméstica e a degradação física e moral aliada ao excesso no consumo de substâncias inebriantes pode conduzir o ser humano? Indubitável que todos os limites éticos vêm sendo corriqueiramente ultrapassados em nossa sociedade. Mas o que devemos meditar é a propósito das razões que produzem campo fértil para a eclosão de tragédias familiares de conotação dantesca, como a supra descrita.
Desigualdade social, miséria, exclusão, ausência de educação apropriada, contexto de indignidade humana. Podemos facilmente compreender tais fatores, lamentavelmente bastante palpáveis em nosso país. Mas nos parece que as drogas lícitas, ainda que regulamentadas, deveriam ter a respectiva venda acompanhada de campanhas educativas com o escopo de prevenção de doenças, incluindo o próprio consumo desenfreado ou etilismo. Existem fatores psicológicos, orgânicos, genéticos e subjetivos que sinalizam a vulnerabilidade de determinados indivíduos para o desenvolvimento de doenças, dentre as quais o alcoolismo se inclui. Campanhas na área de saúde pública poderiam e deveriam ser executadas com fim preventivo de tais males, sem prejuízo de maior fiscalização na venda de substâncias alcoólicas, em especial a menores de dezoito anos.
De ver-se que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III da CF) é justamente a dignidade da pessoa humana. Nesse quadro, sem prejuízo de outras normas de cunho constitucional a incidir para disciplina de políticas que fomentem a saúde pública, a implementação efetiva de procedimentos, regulação, educação quanto à adição, de modo preventivo, são medidas imprescindíveis. Em se tratando de drogas lícitas, de baixo custo e fácil acesso, contextos de padecimento material e ou psíquico comumente são acompanhados do consumo imoderado de tais substâncias, como observamos em considerável parcela de moradores de rua. O preconceito social, a ausência de divulgação adequada e orientações sobre grupos de apoio terapêutico ou de voluntários, também entravam a prevenção e enfrentamento da doença. E dignidade da pessoa humana é justamente o inverso do que o conteúdo da notícia delitiva supra descrita nos transmitiu, pertencente ao Estado o dever de zelar pela concretização do aludido princípio.
Na hipótese do relato da autora do homicídio, corroborado pelos depoimentos dos vizinhos quanto à habitualidade da violência que a primeira sofria do companheiro, podemos perceber sem entraves a natureza rotineira, cíclica e perversa da violência doméstica. Possível dependência financeira, ausência de recursos materiais, filhos menores, submissão cultural, eventual medo, ausência de rede de apoio e silenciamento coletivo sobre a violência doméstica, são circunstâncias que possivelmente incidiram para eclosão do resultado trágico.
Sabemos que a valoração judicial será realizada, se o caso (eventual pronúncia) pelo Tribunal do Júri oportunamente, com o exercício do direito de ampla defesa pela autora do homicídio, mediante alusão às teses pertinentes, inclusive excludentes de ilicitude e porventura com a valoração de uma segunda lesão na vítima (nas costas).
Em se supondo a apreciação dos autos pelo Tribunal do Júri, mesmo que reste por hipótese ausente absolvição da autora do homicídio, ou mesmo reconhecimento de excesso em legítima defesa, podemos cogitar na incidência de circunstâncias atenuantes em relação à conduta em virtude de violência doméstica (artigo 65, III, “c” e artigo 66 do Código Penal).
O fato da autora sofrer a violência em comento, de modo precedente e até mesmo pretérito em relação ao delito, em caráter de continuidade, parece-nos de extrema relevância e certamente será enaltecido perante o juízo competente.
Mas é preciso ter em mente que a percepção de violência doméstica não decorre, ipso facto, em desconsideração do fato delitivo e aniquilação de responsabilização da autora no âmbito penal, de plano, impondo-se a apuração e instauração do devido processo legal sob o crivo do contraditório e à luz do princípio da ampla defesa.
Podemos indagar, e a prole, que presenciou a mãe matar o pai com facadas, ambos embriagados e a vítima supostamente desejando manter com a mulher relações sexuais, destacado o fato como motivação, além das agressões habituais? Podemos cogitar em suspensão ou perda do poder parental da genitora nesse caso?
O artigo 92, inciso II do Código Penal dispõe consistir efeito da condenação penal a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar.
Preconiza o artigo 1637, parágrafo único do CC, que se suspende o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime que exceda dois anos de prisão.
Também , a perda do poder familiar da autora do fato em tese pode ter embasamento no artigo 1638, II do CC (se abandonou os filhos anteriormente) ou inciso III (se praticou atos contrários à moral ou bons costumes de modo dissociado de violência doméstica, de cunho impositivo, portanto), exemplificativamente. Consoante o artigo 1638, parágrafo único do CC, inciso I, “a”, perderá por ato judicial o poder familiar aquele que praticar contra outrem, igualmente titular do mesmo poder familiar, homicídio ou lesão corporal de natureza grave seguida de morte quando se tratar de delito doloso envolvendo violência doméstica e familiar.
Na conjuntura simplista da narrativa da lastimável tragédia familiar, não é possível o conhecimento de detalhes da convivência entre autora e vítima do evento. Mas as declarações de vizinhos e histórico de convivência conturbada em muito contribuirão para elucidar a realidade da dinâmica íntima de interação, com probabilidade de restar esboçado quadro de violência doméstica gravosa.
Tampouco podemos conhecer o resultado de procedimento investigatório e trâmites processuais. Mas parece-nos que a presença de violência doméstica aliada à observação da conduta da genitora em relação aos filhos menores, com oitiva destes por intermédio de escuta especializada, em muito contribuirão para revelação da realidade da dinâmica familiar, com identificação da personalidade da genitora e sua aptidão para exercício do poder familiar (excluindo-se hipóteses de condenação criminal).
A prevenção, a solidariedade, o conhecimento sobre os mecanismos da violência doméstica, são absolutamente imprescindíveis para que todos nós, enquanto sociedade, digamos não à toda forma de agressão. Para que mulheres não matem por restarem cansadas de apanhar. Para que menores não corram o risco de restarem alijados da companhia e convivência com as próprias mães. E por fim, para que o ciclo da violência encontre seu término e não seja reproduzido nas gerações vindouras.
Referências
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1. Stabile, Arthur, “Feminicídios e mortes de crianças e adolescentes crescem em meio à queda da violência no Brasil, mostra Anuário da Segurança”, São Paulo, G1, 24/07/2025, acessado em 09/11/25, www.g1.globo.com.
2. Faria, Adriano, 03/09/2025, www12.senado.leg.br, acessado em 09/11/25;
3. Atlas da Violência 2025, www.ipea.gov.br, acessado em 09/11/25;
4. Piero, Caroline Del, g1, Vales de Mg, 02/11/2025, www.g1.globo.com, acessado em 09/11/25;



