O Mito do amor-perfeito, da alma gêmea, em algum momento povoou o imaginário de muitas pessoas, e, afortunadas e raras são aquelas que de fato encontram sua cara-metade e vivem uma linda história de amor.
Na “era digital”, na qual todos tendem a ficar cada vez mais conectados, encontrar o par perfeito parece uma missão impossível, apesar da aparente proximidade e infinidade de “amigos” e “seguidores”. Vivemos um paradoxo, quanto mais conectados estamos, estudos demonstram que mais solitários ficamos.
A solidão já é uma das epidemias mais graves no século XXI, e, apesar da população mundial ser composta hoje por 7,7 bilhões de pessoas, e o Brasil ter a segunda maior população do continente americano,1 as pessoas relatam cada vez, em maior número, se sentirem solitárias.
A psicóloga Edna Vetta explica que isso se deve ao fato do indivíduo pós-moderno viver intensamente a crença que a “liberdade individual absoluta” trará a realização pessoal,2 o grande desafio é, viver a realização pessoal e a liberdade plena sem sentir-se só, uma vez que para atingirmos estas metas, pressupõe-se o cultivo do individualismo.
A Psicanálise explica que a solidão é considerada um mecanismo de defesa, associado também a doenças mentais, isto é, aos sintomas neuróticos e psicóticos. A solidão é uma experiência dolorosa e democrática, não escolhe onde ou em quem vai se instalar, já tendo sido considerado o grande mal deste século.
Apesar de o século XXI estar marcado pela revolução digital, em alguns setores como o de relacionamentos afetivos esta evolução tecnológica apresenta fatores perversos a seus usuários.
Passamos mais tempo interagindo com amigos e familiares por mensagens instantâneas, e conhecendo novas pessoas pelas redes sociais. Entretanto, sabemos que as redes sociais são plataformas digitais desenvolvidas para mostrar aos seus usuários conteúdo que lhes traga prazer, a fim de proporcionar o mecanismo físico de recompensa o qual ativa neurotransmissores associados ao prazer.3
Cada feedback positivo faz com que o cérebro do usuário libere endorfinas a fim de “prender” o internauta à sensação de bem-estar. Assim, sem perceber, ele acaba por interagir na rede por horas.
Na Espanha, por exemplo, estudos demonstram a dependência tecnológica, reconhecida como uma “dependência sem droga”, a qual atinge especialmente os adolescentes, que quando abusam das redes sociais experimentam síndrome de abstinência, mal-estar emocional, disforia, insônia, irritabilidade e inquietação.4
A utopia criada nas redes sociais, onde todos são belos e felizes, também transmite a sensação aos usuários de estarem em um ambiente seguro com pessoas validadas pela plataforma. Assim, sob a suposta segurança, muitas pessoas buscam fugir da solidão e passam a relacionar-se na busca do seu “par perfeito”.
A ilusão das redes torna propício o golpe em torno do “mito do amor cibernético”, isso ocorre seja da solidão que assola a mulheres independentes financeiramente, como também pela facilidade em ludibriar corações solitários.
A internet inaugurou a reformulação do antigo “golpe do baú”, vivemos na atualidade o que a jurisprudência nomeou como “estelionato sentimental”. Esta expressão utilizada pela primeira vez em 2013, decorre de um julgado proferido pela 7ª Vara Cível de Brasília do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT),5 e, certamente proveniente da previsão normativa encontrada no artigo 171 do Código Penal, que trata do crime de Estelionato.6
Esta ação tratava de uma relação amorosa havida entre a autora e o réu (entre junho de 2010 a maio de 2012), onde o réu iniciou uma sequência de pedidos de empréstimos financeiros, carros, créditos de celular e a utilização do cartão de crédito da autora para compras, afirmando que iria pagar posteriormente. Porém, no curso do relacionamento a autora descobriu que o réu havia se casado com outra, assim, a sentença condenou o réu (ex-namorado) a restituir o dinheiro que a autora havia concedido a ele durante o relacionamento.
Temos ainda, o caso mais famoso de estelionato sentimental que foi o ‘golpista do Tinder’, Simon Leviev, este golpista foi preso pela Justiça Espanhola após ser pego dirigindo com habilitação falsa.
Inspirado neste caso, temos também o ‘Golpista do Tinder brasileiro’, que se apresentava às mulheres como engenheiro solteiro, ambos foram detidos em virtude de golpes financeiros aplicados em diversas vítimas que se relacionavam.
Para a promoção do golpe, é necessário que o golpista desenvolva no relacionamento a confiança e a fidelidade, assim é possível o encontro de 4 elementos: Fraude (meio enganoso, ardiloso), Erro (falsa percepção da realidade), Resultado duplo (a obtenção de vantagem ilícita + prejuízo alheio) e o Dolo (intenção em fraudar).
O golpe decorre do abuso da boa-fé, que na crença do “mito do amor cibernético” entrega a seu amado tudo por acreditar na correspondência do seu amor. A boa-fé significa a mais próxima tradução da confiança, que é, como visto alhures, o esteio de todas as formas de convivência em sociedade.
Cristiano Chaves leciona que “nas relações de família exige-se dos sujeitos um comportamento ético, coerente, não criando indevidas expectativas e esperanças no(s) outro(s). É um verdadeiro dever jurídico de não se comportar contrariamente às expectativas produzidas, obrigação que alcança não apenas as relações patrimoniais de família, mas também aqueloutras de conteúdo pessoal, existencial.”7
Dentro do cenário de solidão, vinculado com a irrealidade, proporcionada nas redes sociais, é cada vez mais comum pulularem notícias de golpes sentimentais na internet vitimizando pessoas sós que buscavam o amor cibernético.
O último golpista sentimental cibernético que brilhou nos noticiários, foi o golpista “Astronauta Russo” que vitimou uma senhora de 65 anos (Yomiuri Shimbun), a qual após relacionar-se pela rede social com o golpista, acreditando que ele era de fato um astronauta russo, lhe enviou 4,4 milhões de ienes (aproximadamente 160 mil reais), para auxílio financeiro, a fim dele voltar para o planeta Terra e viveram o mito do amor cibernético.
Para termos um resultado o mais próximo do esperado na busca pelo amor perfeito, é preciso tratar da solidão com seriedade, a solidão que torna o indivíduo vulnerável e, incapaz de compreender que na maioria das situações o que ocorre na relação são as projeções8 de qualidade e desejos no outro sujeito da relação.
E mais, como defende Pierre Bourdieu, é preciso compreender que o indivíduo está limitado (em sua independência e liberdade), a fatores externos que ele chama de poder simbólico (seria um poder oculto)9 o qual exerce a violência simbólica.10
Na busca do amor perfeito, o impulso (principalmente de mulheres solitárias, com autonomia financeira) em procurar parceiros míticos na internet, para aplacar a solidão, poderia ser explicado por Bourdieu através da sua teoria e de conceitos criados por ele.
Isso porque, o impulso da busca pela completude, não estaria alicerçado apenas na solidão, diante da liberdade ou mesmo na independência financeira conquistadas pelo indivíduo, este impulso seria decorrente da cultura dominante, habitus,11 a qual (na atualidade) de forma implícita sugere que uma mulher acompanhada tem maior “valor social” que a mulher solitária.
Pois, para o ‘sistema simbólico’ não basta possuir liberdade e independência financeira para ser ‘aceita’ no meio social, para tanto, é necessário a presença de um parceiro ao seu lado a fim de conferir credibilidade ao seu sucesso, e, através deste exercício interpretativo nos conceitos de Bourdieu, é possível compreender por que a maior incidência vítimas de fraudes on line são mulheres.
Assim chego à conclusão que, mesmo a lei, com provas das fraudes no processo, chegando a decisões judiciais indenizatórias, é limitada, pois é capaz de reverter apenas a perda financeira sofrida em decorrência do golpe.
A lei é incapaz de consertar um coração partido, impedir projeções amorosas e reverter a cultura imposta pela violência simbólica de que existe um par ideal para cada mulher solitária na internet, e, que para ela sentir-se completa, deve buscar o mito do amor cibernético.
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Referências
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1. Informação obtida site Uol: https://bit.ly/3rS3pV6.
2. VETTA, Edna Paciência. Solidão e Pós-modernidade. Psicóloga-Ribeirão Preto-Terapia Cognitivo-Comportamental. Link de acesso: https://bit.ly/3S55Ez6.
3. Informação obtida no site Uol. Link: https://bit.ly/3CQi09O.
4. MENÁRGUEZ, Ana Torres. ESPECIAL CRESCER CONECTADOS – Os dependentes de telas: o “vício sem substância” que começa aos 14 anos. Publicado em 12 abril 2019 no jornal ‘El Páis’, na cidade de Madri. Link de acesso: https://bit.ly/3rVKp7S.
5. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Sentença dos Autos n. 0012574-32.2013.807.0001. Requerente: Suzana Oliveira Del Bosco Tardim. Requerido: Sergio Antonio Pinheiro De Oliveira. Juiz: Luciano dos Santos Mendes. Brasília, 08 set. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3TjXfIK. Acesso em: 29 abr. 2021.
6. Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
7. FARIAS, Cristiano Chaves. A tutela jurídica da confiança aplicada ao Direito de Família. https://bit.ly/3Cu1wTt.
8. Projeção: operação na qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisa, as qualidades, os desejos, os afetos, os sentimentos que estão internalizados e ele desdenha e/ou recusa aceitar e/ou admitir que lhe são pertencentes. Link: https://bit.ly/3MsSH0G.
9. “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989. p.7.
10. “Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder Simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências”. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989. p.9
11. A cultura dominante (do patriarcado) é tida por naturalizada pelos dominados através do que Bourdieu chama de habitus, que para Bourdieu, é a incorporação das estruturas sociais em um indivíduo, que de acordo com a posição social que ocupa lhe permite ou não formar posições sobre os diferentes aspectos da sociedade. Assim, para Bourdieu, “o habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em conjunto unívoco de escolhas, de bens, de práticas.” (BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.p. 21)