Em recente decisão, a 1ª Vara da Fazenda Pública determinou que a Prefeitura do Município de São Paulo analisasse pedido administrativo apresentado por contribuinte de ISS, cuja decisão estava pendente há mais de 12 meses
A morosidade administrativa como fator de insegurança jurídica
A morosidade administrativa é uma das faces mais visíveis da ineficiência do poder público brasileiro. Seja na esfera federal, estadual ou municipal, não são raros os casos em que pedidos administrativos legítimos, já instruídos com todos os documentos exigidos pela norma aplicável, permanecem por meses ou anos sem qualquer manifestação da autoridade competente. Essa realidade, além de comprometer o funcionamento regular de empresas e o exercício pleno da cidadania, revela um descompasso entre o dever de prestação eficiente do serviço público e a prática burocrática cotidiana.
No Brasil, esse desafio se intensifica diante da capilaridade do Estado. Com mais de 5.570 municípios, conforme dados atualizados do IBGE, o país convive com realidades administrativas muito diversas entre si, o que dificulta a padronização de rotinas, prazos e níveis de atendimento. Ainda assim, a quantidade de entes federativos não pode justificar omissões administrativas que, para além da ineficiência, ferem princípios constitucionais e geram insegurança jurídica.
Neste contexto, o Poder Judiciário tem sido frequentemente acionado para suprir a ausência de resposta por parte da Administração. A judicialização, nesses casos, não decorre de um desejo de litígio, mas da necessidade de proteção de direitos que restam desamparados pela via administrativa.
Violação ao princípio da eficiência e ao direito de petição
A Constituição Federal, ao estabelecer os princípios que regem a Administração Pública, consagrou expressamente, no caput do artigo 37, o dever de eficiência como uma das balizas da atuação estatal. Tal princípio exige que os órgãos públicos atuem de forma célere, eficaz e orientada à obtenção de resultados, especialmente quando provocados por requerimentos de cidadãos ou empresas que buscam exercer seus direitos perante o Estado.
Entretanto, a inércia administrativa diante de um requerimento regularmente apresentado, como ocorreu no caso levado ao Judiciário, não apenas afronta esse dever de eficiência, mas compromete a lógica do Estado democrático de direito. A mora excessiva, quando desprovida de justificativa razoável, deslegitima a função administrativa e impede que o administrado organize sua atuação conforme as regras do ordenamento jurídico.
Além disso, o direito de petição, previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, assegura a qualquer pessoa o direito de apresentar pedidos à Administração Pública e obter uma resposta. Tal direito, contudo, não se satisfaz com o mero protocolo da solicitação, pois ele pressupõe a análise efetiva do mérito do pedido dentro de um prazo razoável, ante a expectativa gerada ao se provocar o ente administrativo. Contudo, o silêncio prolongado esvazia o conteúdo desse direito fundamental, transformando-o em um mero ato simbólico destituído de eficácia.
Além disso, necessário destacar que no âmbito municipal de São Paulo, a Lei nº 14.141 de 2006, impõe prazos claros para a tramitação de processos administrativos. Segundo o art. 33 da referida norma, o prazo para decisão será de 15 (quinze) dias, a contar do recebimento do processo no órgão competente para decidi-lo, salvo prorrogação expressamente motivada.
Assim, vejamos:
Art. 33. Uma vez concluída a instrução do processo administrativo, a autoridade competente deverá decidir no prazo de 15 (quinze) dias, permitida a prorrogação devidamente justificada.
Portanto, a previsão legal não apenas estabelece um limite temporal para que a Administração se manifeste, mas também condiciona qualquer eventual prorrogação do prazo à apresentação de justificativa expressa e formal, ou seja, a ausência de decisão e a omissão na motivação da prorrogação do prazo evidenciam o descumprimento de um dever jurídico objetivo, cuja violação enseja, inclusive, a responsabilização do agente público e a adoção de medidas judiciais para garantir o exercício do direito de petição e a eficiência da administração pública.
Trata-se, assim, de uma exigência que impõe responsabilidade ao ente municipal, especialmente em temas de impacto econômico direto, como no caso de regimes especiais de tributação.
Caso concreto e impactos no planejamento tributário e na atividade empresarial
No caso concreto, tratava-se de empresa atuante no setor de saúde suplementar que, por meio de processo administrativo, buscava obter da Prefeitura de São Paulo a consolidação da base de cálculo aplicável ao Imposto Sobre Serviços – ISS, bem como a definição dos critérios de emissão de notas fiscais compatíveis com seu modelo de negócio. A ausência de manifestação por parte do ente público, por mais de 12 meses, impôs um cenário de incerteza que comprometeu o adequado planejamento tributário da empresa.
Ressalta-se, ainda, que a falta de resposta da Administração não isenta o contribuinte, que permanece juridicamente obrigado a cumprir suas obrigações tributárias, de modo que pedidos que dependem de análise interpretativa sobre o regime jurídico aplicável, como in casu, impõe ao contribuinte o risco concreto de autuação. Isso porque a própria Administração detém a competência para definir os parâmetros de tributação e, ao mesmo tempo, é a responsável pela fiscalização e imposição de sanções em caso de seu descumprimento.
Esse desequilíbrio, em que o Poder Público permanece inerte quanto à definição de critérios tributários e, ao mesmo tempo, preserva seu poder sancionador, compromete a segurança jurídica e impõe um ônus desproporcional ao contribuinte.
Além disso, empresas que atuam em setores regulados, como o da saúde suplementar, são especialmente impactadas por essa indefinição, tendo em vista que operam sob margens extremamente reguladas e com exigências contábeis e fiscais rigorosas.
Assim, a ausência de resposta administrativa não apenas frustra a expectativa legítima de previsibilidade fiscal, como também dificulta a tomada de decisões estratégicas, de investimentos e de conformidade por parte dos contribuintes que buscam atuar com diligência e regularidade.
O mandado de segurança como remédio constitucional e a responsabilidade da autoridade coatora
O mandado de segurança é uma das mais relevantes garantias constitucionais de proteção individual e coletiva contra ilegalidades ou abusos de poder cometidos por autoridades públicas. Previsto no art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal, o instituto assegura que será concedido mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público.
Ainda, sua regulamentação infraconstitucional encontra respaldo na Lei Federal nº 12.016 de 2009, que estabelece, em seu art. 1º, o cabimento da ação sempre que houver violação ou justo receio de violação a direito líquido e certo por ato de autoridade, salvo nas hipóteses de habeas corpus e habeas data. O direito invocado deve ser comprovável de plano, por meio de prova documental pré-constituída, sendo o mandado de segurança, portanto, uma ação de cognição sumária e rito célere, própria para a tutela contra omissões ou abusos administrativos que envolvam matéria de fato incontroversa.
A legislação também prevê, em seu art. 7º, inciso III, a possibilidade de concessão de medida liminar para determinar à autoridade coatora que pratique ou se abstenha de praticar determinado ato, como forma de assegurar a efetividade do provimento jurisdicional.
Além disso, o mandado de segurança pode ser utilizado tanto contra atos comissivos, caracterizados por condutas administrativas ativas e ilegais, quanto contra atos omissivos, quando a Administração Pública permanece inerte diante de um dever legal de agir. Este último é justamente o caso que motivou o ajuizamento da ação judicial referida neste artigo: a ausência de análise de um requerimento administrativo regularmente protocolado, por mais de doze meses, mesmo após reiteradas diligências administrativas por parte da empresa requerente.
Esse tipo de inércia viola o direito de petição, já mencionado, bem como a razoável duração do processo (previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal), comprometendo, também, o princípio da eficiência previsto no caput do art. 37 da Constituição.
Justamente por isso é que reiteradas decisões do Poder Judiciário têm reconhecido que a demora injustificada na apreciação de pedidos administrativos configura ilegalidade apta a ensejar a concessão da segurança. Neste sentido, inclusive, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui ampla jurisprudência referindo que a extrapolação do prazo previsto na legislação municipal da capital configura abuso de direito pela Administração.
Neste sentido, vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL – Mandado de segurança – IPTU – Concessão da segurançapara determinar que a autoridade apontada como coatora proceda à análisedo pedido administrativo de restituição – Requerimento formulado em19/04/2023, sem qualquer análise pelo Fisco Municipal até a distribuição dapresente impetração (25/05/2023) – Extrapolação do prazo previsto noart. 33 da Lei Municipal nº 14.141/2006 – Afronta ao princípio darazoável duração do processo administrativo, nos moldes do incisoLXXVIII do art. 5º da CF – Precedente desta 15ª Câmara de Direito Público- Considera-se interposto o recurso oficial – Sentença mantida – Recursosimprovidos .(TJ-SP – Apelação Cível: 10308834520238260053 São Paulo, Relator.:Eutálio Porto, Data de Julgamento: 01/07/2024, 15ª Câmara de DireitoPúblico, Data de Publicação: 01/07/2024.)
Frise-se, também, que a Lei Federal nº 12.016 de 2009 possui ferramentas coercitivas para obrigar que a autoridade impetrada cumpra as decisões proferidas pelo Poder Judiciário, prevendo o seu art. 26, por exemplo, a possibilidade de prisão da autoridade por crime de desobediência, caso demonstrada a intenção de se descumprir a ordem judicial.
Portanto, quando esgotadas as vias administrativas e comprovada a inércia do ente público, o mandado de segurança se revela o remédio constitucional adequado, não apenas para assegurar o direito material, mas também para responsabilizar a autoridade coatora que, ao descumprir seus deveres legais, compromete a legalidade e a previsibilidade das relações entre o poder público e os cidadãos.
Reflexão
O caso analisado revela não apenas a morosidade inaceitável da administração pública na análise de requerimentos administrativos, mas também evidencia os reflexos práticos dessa omissão sobre a segurança jurídica dos contribuintes e o funcionamento eficiente do Estado quando a Administração deixa de responder a pleitos legítimos em prazo razoável.
O mandado de segurança, neste contexto, cumpre seu papel constitucional de salvaguardar direitos líquidos e certos frente a atos omissivos ou comissivos da Administração, reafirmando a supremacia dos princípios constitucionais da legalidade e da eficiência. A decisão judicial analisada demonstra, assim, que o Judiciário está atento à inércia administrativa, e reforça que a ausência de resposta por parte do ente público, além de configurar violação de direitos fundamentais, contribui para o aumento da litigiosidade e da sobrecarga do próprio sistema judiciário.
Por fim, resta claro que o respeito aos prazos legais, especialmente aqueles fixados em normas específicas como a Lei Municipal nº 14.141 de 2006, não é mera formalidade, mas uma exigência para a preservação da confiança legítima, da previsibilidade nas relações jurídicas e da integridade da atividade empresarial.