A Lei 11.340/2006 completou a maioridade civil – dezoito anos de sua promulgação – no dia 08 de agosto corrente. A Lei 14.448/22, por seu turno, instituiu, em âmbito nacional, o Agosto Lilás como mês de proteção à mulher, destinado o período à conscientização para o fim da violência contra a mulher. Por intermédio de tal norma preconizou-se o dever de anualmente, em agosto, a União e os demais entes federados envidarem esforços para a promoção de ações intersetoriais de conscientização e esclarecimento sobre as diferentes formas de violência contra a mulher, com o objetivo de orientação, informação sobre medidas possíveis, redes de apoio disponíveis, canais de comunicação existentes, promoção de debates e eventos, amparo às atividades desenvolvidas pela sociedade com objetivo similar, mediante estímulo às iniciativas de entes privados voltadas à prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher, inclusive com utilização da cor lilás, veiculação de campanhas na mídia com o intento de informar acerca da natureza da violência doméstica e familiar, incitando, com o fornecimento de informações explícitas em locais públicos, a reflexão e noticiando contatos de emergência para eventual denúncia e suporte à vítima, dentre outras ações.
Assistimos no corrente mês diversas atividades promovidas por órgãos públicos, entidades de classe, organizações não governamentais, associações de mulheres de carreiras distintas justamente com o escopo de consumação dos ditames elencados na campanha Agosto Lilás.
A origem da vinculação da cor lilás aos direitos das mulheres remonta às raízes do movimento feminista, conforme discorre Maria Guimarães1 , especialmente na década de 60 quando, por intermédio de auto-organização do movimento feminista, foi eleita a cor em questão para representá-lo, posto decorrer a cor lilás da mistura de rosa e azul, cores identitárias dos sexos feminino e masculino tradicionalmente, em termos inclusive culturais e ocidentais. Os primevos registros históricos a propósito da adoção da cor lilás sob tal simbolismo são datados no início do século XX, todavia, quando fora utilizada a coloração pelas sufragistas inglesas para representar a luta pelo direito ao voto. Alude-se, por conseguinte, ao lilás como síntese cromática do embate por igualdade e libertação.
Inexistem quaisquer dúvidas sobre o caráter salutar da campanha, agregador e essencial para implementação de informações relevantes, estimulando ponderação acerca da temática, evidenciando a necessidade de novas políticas públicas para prevenção da violência doméstica e familiar, cooptando pessoas que possam compreender e aderir ao conteúdo da campanha, com prevenção e combate à violência contra mulheres e meninas. Salientamos que todas as iniciativas são extremamente relevantes e mais que isso, cruciais no presente momento histórico.
Justifica-se. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2024 2 não somente apontou a persistência da violência contra as mulheres em 2023, como consignou o aumento dos índices do aludido fenômeno, mediante a incidência de agressões, feminicídios e outros crimes de gênero 3.
Então, apenas nos resta indagar: por mais elogiosa que seja a norma legal e assim efetivamente se dê, o supremo escopo da Lei 14.448/22 ao instituir a campanha do Agosto Lilás sobre a conscientização da imprescindibilidade de superação da violência contra mulheres e meninas, estaria sendo suficiente? Quer nos parecer que a negativa se impõe, frente às estatísticas e notícias rotineiramente divulgadas pela imprensa e veículos oficiais de comunicação sobre a cotidiana percepção de violência doméstica e familiar por pessoas do gênero feminino.
O contexto em questão nos remete a urgência de continuidade na defesa pública, pela sociedade civil e órgãos governamentais, dos direitos das mulheres e dos ditames legais aplicáveis para prevenção, em primeiro lugar e repressão, em derradeiro plano, dos ilícitos peculiares a violência doméstica e familiar.
São imperiosos questionamentos individuais sobre a busca da real sororidade nas relações entre pessoas do gênero feminino, superando-se o individualismo com outorga de ênfase nas pautas atreladas aos direitos das mulheres. Mas não somente isso. A informação idônea e aplicação hábil dos dispositivos da Lei Maria da Penha, que concretamente já vêm se revelando como fatores bastante eficazes em desfavor da violência doméstica e familiar, são práticas que merecem maior intensificação, como poderá se verificar com a criação de novas unidades de serviços concentrados e multidisciplinares para atendimento e orientação às vítimas de violência de gênero, educação nas escolas públicas e privadas, dentre outras medidas.
A divulgação de obras didáticas e distribuição de cartilhas de direitos das mulheres para prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar não denota menor expressividade. A busca da objetividade e da singeleza nas explanações dos conceitos jurídicos e discriminação de dados para acolhimento e proteção das mulheres, inclusive números telefônicos de autoridades policiais para denúncias e pedidos de proteção imediata, indubitavelmente auxiliam mulheres e meninas a não somente melhor captarem a dinâmica às quais se sujeitam, como também a perceberem que não se encontram desamparadas, tampouco fazem jus a percepção de constrangimentos. Sobre esse costumeiro sentimento, compartilhado por muitas vítimas de violência doméstica e familiar, já o descrevemos em obra cuja publicação precedeu a presente coluna4 :
Vendo-a assim tão quieta, Ana a olhou demoradamente e perguntou, séria, se estava tudo bem com ela. Vera até se surpreendeu com o gesto, grave, como se o tempo houvesse parado para que fosse, então e finalmente, vista por alguém. Embora um pouco constrangida como se tivesse sido pega na prática de um ato censurável, que precisava ser escondido a todo custo, Vera se recompôs e respondeu que claro, estava tudo ótimo. Era melhor mentir a dizer o que lhe ia no íntimo.
Portanto, o que todos devemos não somente esperar, mas exigir, homens e mulheres, é que pessoas do gênero feminino não se sintam invisibilizadas, humilhadas ou constrangidas ao denunciar atos de violência doméstica para que possam, com êxito, sair de quadros de indevida submissão e desrespeito a seus direitos essenciais e indisponíveis. Para que vidas sejam, inclusive, poupadas.
Que, o mais célere possível, não precisemos do Agosto Lilás. E que todas as mulheres e meninas tenham seus direitos humanos acatados.
Referências
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1. site, postado em 03 de março de 2021, acessado em 11/08/2024;
2. site, acessado em 11/08/2024
3. site, matéria veiculada em 18/07/2024, acessada em 11/08/2024;
4. Leite, Luciana Simon de Paula, “Para Nossas Meninas”, Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2021, pg. 37;