No último dia 28, na Praia do Forte, em Mata de São João, na região metropolitana de Salvador, Jucione Manuelle — que trabalhava recebendo turistas com trajes típicos da cultura baiana e tirando fotos com eles — foi constrangida, humilhada e atingida pela força brutal do racismo que é sofisticada em hierarquizar, criminalizar e desacreditar publicamente sujeitos posicionados à distância dos paradigmas político-normativos da branquitude, enquanto máquina de poder. Jucione foi acusada de roubar a carteira de uma turista argentina que, pouco tempo depois, a encontrou em outro estabelecimento. A trabalhadora foi obrigada a se despir para provar que não havia furtado os pertences da turista.
É importante frisar, no entanto, que não apenas as roupas foram despidas, mas a ocorrência do racismo, enquanto política estruturalmente aviltante, fez com que a humanidade da trabalhadora fosse questionada, enfraquecida e negociada. Aliás, esse é um dos principais recursos das políticas discriminatórias: estilhaçar humanidades, a fim de que as violências direcionadas aos grupos precarizados não atinjam a ninguém. Assim, negritamos que o racismo atua como uma lente produzida de forma tecnopolítica, organizando belicamente o território e o imaginário social, reafirmando os lugares de subalternidade produzidos historicamente para naturalizar as violências contra os sujeitos negros, bem como neutralizar a sua agência, invalidando qualquer possibilidade de insurgência. A intersecção entre a raça e o gênero amplia, no caso de Jucione, os enunciados e as práticas discriminatórias à medida em que faz com que sua presença seja lida a partir das molduras racistas de um corpo criminalizado — que “não consegue controlar os seus impulsos” e por isso deve ser denunciado, contido e tutelado — e da misoginia, que fabrica sobre identidades femininas uma política que destroça a possibilidade do cuidado, que expõe esse corpo como se ele fosse público e, por essa razão, facilmente humilhável.
A intercorrência do racismo e de outras práticas discriminatórias que incidiram sobre Jucione não só conjuram a precariedade, enquanto uma experiência política que constrói o outro, mas corroboram uma construção moral que incute nos corpos racializados a pecha do perigo. Fazer com que corpos racializados sejam associados aos estereótipos da criminalidade e da ausência de controle sempre foram recursos sofisticados do racismo, como política de gerenciamento aviltante das relações sociais. Desse modo, o racismo antinegro postula uma máxima que caminha na direção contrária do princípio constitucional da presunção de inocência. Na lente do racismo, o corpo racializado é, portanto, “culpado até que se prove o contrário”. Trata-se de um sistema que constrói discursos de rebaixamento moral e, ao mesmo tempo, atua como inquisidor. Um sistema que inverte a lógica do crime, onde a vítima é transformada em algoz. Sendo assim, não há possibilidade de equidade ou justiça social enquanto o racismo for uma moldura que desumaniza corpos.