Natureza, diversidade cultural, amor e humanidade: homenagem à Andrea Borghi Moreira Jacinto

Natureza, diversidade cultural, amor e humanidade: homenagem à Andrea Borghi Moreira Jacinto

Andrea-Borghi-Moreira-Jacinto

Quantos são os dilemas que envolvem a complexa relação entre as sociedades humanas e a natureza? Quantos meandros de rios é preciso navegar para compreendê-los? Já nos encontramos em um nível de conhecimento que torna praticamente irrespondíveis esses questionamentos. Porém, à medida em que alcançamos a consciência da complexidade inerente à questão ambiental, podemos caminhar para dias melhores: é preciso conhecer para cuidar.

Como pesquisadora das questões ambientais com formação jurídica, confesso que sempre fui aberta às abordagens transdisciplinares e busco, portanto, beber em fontes outras, para além da fria letra da lei. Porém, nas linhas que escrevo hoje, tratarei de homenagear um ser de luz, que me mostrou grande parte daquilo em que hoje acredito, e que me ofereceu essa água do conhecimento vindas de outros olhares… de outras paragens. Descobri que há pessoas que surgem em nosso caminho para lançar luz sobre aquilo que precisa ser melhor visto. Então, este texto é sobre uma delas.

Há aproximadamente 15 anos atrás, enquanto aluna do curso de graduação em Direito na Universidade do Estado do Amazonas, optei pela área ambiental. Esta bela casa do saber oferecia aos estudantes uma espécie de linha de formação, que garantia a possibilidade de cursar disciplinas específicas às suas áreas de interesse. Obviamente, minha opção foi “Direito Ambiental”. A linha possibilitava cursar diversas disciplinas específicas sobre meio ambiente. A primeira delas “Meio Ambiente I”, ministrada por uma professora de olhar e palavras doces, de formação antropológica.

Com sua fala instigante, apresentou textos clássicos da Antropologia, tais como “Argonautas do Pacífico Ocidental”, de Bronisław Malinowski; “O arco e o cesto”, de Pierre Clastres e “As estruturas elementares do parentesco”, de Lévi-Strauss. Como aluna de graduação em um curso jurídico (porém meio fora da casinha), recebi a oportunidade desses estudos como um presente. Esses textos, juntamente com suas palavras amorosas, ampliaram completamente minha visão de mundo. Como alguém nascida e criada na Amazônia, afirmo com convicção que não compreendia o que significava toda a diversidade de povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia, tampouco a diversidade do mundo. Não compreendia o conceito de alteridade. Não havia pensado no quão diferentes podemos ser, e nem refletido sobre como esta diferença traz beleza à vida. Pelo menos até aquele momento.

Aula após aula, essa moça de belos olhos e sorriso sincero, me ensinou a ver com outras lentes a diversidade. Ensinou também, que o Direito tem um papel primordial para que tanta singularidade e beleza sejam respeitadas e protegidas.

Como me considero uma pessoa de sorte, pude iniciar um projeto de pesquisa com ela, ainda na graduação, sobre Memória do povo Mura, aprendendo que há muito conhecimento que precisa ser registrado: para além de todos os problemas enfrentados pelos povos indígenas, ainda pairava a ameaça do esquecimento sobre seus conhecimentos e tradições. Esses temas foram brava e docemente enfrentados por Andrea, nos projetos que propôs. Sua dedicação em registrar, como boa antropóloga, nos rendeu excelentes materiais (compartilhados ao fim deste texto), nos quais é possível contemplar sua delicadeza, singeleza e profundidade para refletir sobre tantos dilemas.

Poderia aqui continuar este relato, falando sobre os tantos conhecimentos acadêmicos que ela proporcionou. Porém, também gostaria de registrar sua preocupação para com seus alunos. Ainda na graduação, fui contemplada com uma bolsa para intercâmbio na Argentina (Universidad Nacional de Catamarca), o que, infelizmente, me fez interromper a pesquisa sobre os Mura. Andrea me convidou para um café em sua casa: conversou, doou seu afeto e ofereceu uma bota para usar no frio, porque eu ia precisar.

Mais tarde, retornando do intercâmbio e terminando a graduação, ingressei no Mestrado em Direito Ambiental da UEA, onde ela também lecionava. Novamente tive a grata oportunidade de estudar com ela em “Meio ambiente e diversidade cultural”: uma vez mais, um sem-fim de reflexões, instigações e momentos cheios de sabedoria e leveza. Pude ouvi-la em muitas ocasiões: cafés, palestras, aulas, bancas… que privilégio!

Passado o tempo, saí de Manaus, ingressei no doutorado, fui contemplada com uma bolsa para doutorado sanduíche: parti para o México. Em meus primeiros dias lá, precisei suportar a perda de um grande amigo, de um irmão, o que foi uma das maiores tristezas dessa vida. A partida precoce de Joelson Cavalcante nos tirou o chão. Joe também havia sido seu aluno (com nossa turma incrível) colecionando tantos bons momentos e aprendizados. No México, ainda torcendo pela recuperação dele, recebi uma mensagem afetuosa de Andrea intitulada “amor para Joelson”, na qual ela nos enviava suas melhores e amorosas energias, informando que Joe tinha partido deste mundo. Suas palavras: “Queridas, escrevo para dar um abraço bem grande em vocês, e com vocês, nas pessoas que amavam e amam o Joelson, com seu sorriso largo, olhos curiosos e vontade de mundo. Foi um privilégio conhecê-lo, e partilhar um pouco dessa amizade tão bonita que vocês construíram com ele. Meu coração está com vocês”.

Andrea ensinou sobre natureza, povos, alteridade, diversidade e sobre leis, mas também ensinou sobre fraternidade genuína, humildade, humanidade, leveza, respeito e empatia… ensinou sobre amor. Não atuava em cima de pedestais, não demonstrava qualquer sinal de arrogância ou sentimento de superioridade por todo o conhecimento que ela compartilhava com todos e todas à sua volta. Mesmo em bancas, onde é necessário corrigir os alunos apontando seus erros, ela mantinha um amor inenarrável: ao invés de dizer “não pode” ou “está tudo errado”, ela soltava: “então, mas se você pensar sob esta outra perspectiva? o que acha? será que olhar de forma responderia melhor àquilo que você precisa?”. Confesso que vez ou outra, em minhas situações pessoais e profissionais, penso em como ela faria e sempre chego à conclusão: não é para qualquer um ser como Andrea, mas precisamos seguir esse exemplo se quisermos construir um mundo melhor.

Talvez por este motivo, por estar tão perto do amor e da luz, não precisou estar tanto tempo nesta Terra de aprendizados. Foi chamada, na madrugada de sábado (20/08/22), para o outro plano, após lutar contra um câncer. Obviamente, gostaríamos de tê-la mais tempo conosco, porém, como não foi possível, agradecemos pela oportunidade de ouvi-la, desafiando-nos a espalhar seus estudos, seus registros, suas sementes.

Abaixo, segue o acesso para algumas produções da professora, em conjunto com outros colegas e pesquisadores que atuaram no Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas:

Andrea é semente! Colheremos suas flores!

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Danielle de Ouro Mamed

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