Em tempos de pandemia por conta do COVID-19, exponencial se perfez o crescimento da gama de brasileiros endividados. Dados, como o da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic),1 apontam que alarmantes 67,1% das famílias brasileiras relataram ter dívidas (cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro). O que, per si, afere um recorde histórico e assolador para nosso país.
O que se tem atualmente é um verdadeiro fenômeno, O Superendividamento, que se consigna no desastre social do endividamento muito elevado pela população brasileira, em função da busca por melhores condições de vida, fruto da influência consumista, natural da conjuntura da sociedade de consumo em massa fomentada no século XX, e marcado pelo incentivo publicitário desleal para com o consumidor, ao verificar-se a interferência na liberdade do consumidor em definir suas decisões nas relações de consumo.2
Atentos a este cenário e suas catastróficas consequências para a economia brasileira, nossos legisladores, somados esforços a partir de doutrinadores de renome – como a efêmera porta-voz do Projeto de Lei 3.515/15, Cláudia Lima Marques –, deram início a tramitação do PL 3.515/2015, aprovado recentemente como Lei 14.181/21. Tal projeto idealizou nova dimensão ético-inclusiva e solidarista, por implementar instrumentos que previnem o superendividamento da pessoa física de boa-fé, promovendo o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, possibilitando a fixação de plano de pagamento.
A começar pela inclusão no rol dos princípios do art. 4º – do CDC – a serem seguidos no Código de Defesa do Consumidor do Princípio do Fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores, em clara alusão ao Modelo Europeu de Reeducação, conservadora pelos contextos religiosos judaico-cristãs e raízes romanísticas, em que pese o berço dos estudos sobre a dignidade humana e valores norteadores de ética e postura social do homem, tendo o Estado como garantidor destes direitos.3 A exemplo, do apoio à Estratégia Nacional de Educação Financeira Sumário – ENEF.
Não obstante, foi trazido no inciso X o Princípio relativo à Prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. Tal preocupação se deu face à perturbação com a debilidade da gestão doméstica por muitos brasileiros. Fator que oportuniza às instituições oferecerem oportunidades de crédito-fácil, na intenção de que possam aferir a tão sonhada subjetividade, apontada por Zygmunt Bauman. O autor destaca em sua obra “Vida e consumo” que as pessoas, inseridas numa sociedade de consumo, se veem na obrigação de promover a própria imagem, como sendo uma mercadoria “atraente e agradável”. Isto se dá pelo risco da tão preocupante “morte social”, que seria o total desinteresse alheio pela imagem do mesmo.4
Face a tais riscos, foi-se acrescido ao Art. 5°, que gere a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, os seguintes instrumentos: VI – instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural e VII – instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento. De modo a dar aso ao incentivo na implementação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, estimulando os magistrados no encaminhamento de conflitos à mediação em Tribunais.
Vê-se, assim, uma tentativa válida de fazer valer os novos direitos somados ao rol do Art. 6º do CDC, quais sejam: XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas; XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito; XIII – a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.
Afinal, sob o contexto do mercado atual, de que “a sobrevivência da economia de mercado depende essencialmente de um pressuposto básico favorável, uma identificação entre sociedade e mercado”,5 a tendência pelo consumo leva o consumidor a despender de valores acima de sua realidade, de forma, inclusive, irracional, ocasionando o superendividamento.6
Como se sabe, O que se vê no Superendividamento mais lembra um fenômeno, vez queque atinge todas as classes brasileiras, mas, principalmente, as camadas sociais mais simples, seja por lhes privar de uma saúde financeira e correta condução da economia doméstica, seja pelas mazelas psicoafetivas e sociais de se encontrar em dívida, em muitos casos, muito superiores aos próprios ganhos. Sendo assim, a finalidade das novidades em nosso CPC consubstancia-se em uma diligência plena na luta contra esta espiral do endividamento excessivo que afeta o dia-a-dia e o planejamento familiar sem precedentes.7
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Referências
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1. CNC. Análise Peic: Endividamento das famílias alcança novo recorde,e inadimplência acelera em junho. 2020. Disponível em: https://bit.ly/36WVmf2. Acesso em: 10 jul. 2020.
2. MARQUES. Claudia Lima. Conciliação em matéria de superendividamento dos consumidores. In: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (org.); LIMA, Clarissa Costa de (org.); MARQUES, Claudia Lima (Org.). Direito do consumidor endividado II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Editora RT, 2016, p. 265-290.
3. MACHADO, Wilson Pantoja. Superendividamento: a responsabilidade pré-contratual do credor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 28.
4. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 31.
5. CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. In: MARQUES, Claudia Lima (Org); MIRAGEM, Bruno (Org). Direito do consumidor: vulnerabilidade do consumidor e modelos de proteção. São Paulo: Ed Revista dos Tribunais, v.2, 2011, p. 671-70.
6. SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento como motivo para revisão dos contratos de consumo. In: MARQUES, Claudia Lima (org); CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (org); LIMA, Clarissa Costa. Direitos do consumidor II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Ed Revista dos Tribunais. 2016, p. 203-233.
7. ALVES, Túlio Coelho. O fenômeno do superendividamento relativo à abusividade das condutas de instituições de crédito . Monografia(Graduação em Direito) – Dom Helder – Escola de Direito. Belo Hrizonte, p. 62, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3y0cn45. Acesso em: 20 jul. 2021.