O abismo entre a vantagem e o privilégio: por uma ética da solidariedade

O abismo entre a vantagem e o privilégio: por uma ética da solidariedade

Racismo

No último mês, circulou pela internet um vídeo em que um homem de 53 anos, branco e gay, profere ofensas racistas à sua vizinha ao chamá-la de “preta”, “macaca”, “feia” e “preta fedida”, em Boa Esperança, no sul de Minas Gerais. Essa cena é estarrecedora, pois revela como as dinâmicas de poder fazem com que sujeitos subalternizados compreendam a inimizade deslocada de sua origem. A manipulação e a dissimulação política imperam nas cenas em que se ventila o ódio contra sujeitos marcados como dissidentes, levando alguns a acreditar – e, nesse caso, falhando miseravelmente – na blindagem política de algum marcador que lhes confere vantagem. Nesses termos, brancura e masculinidade permitem que esse homem se sinta autorizado a se sobrepor àquela mulher através da misoginia e do racismo. Contudo, no campo da experiência política, ao se distanciar da masculinidade hegemônica, que não se traduz apenas pela brancura, esse sujeito é designado no mesmo território político depreciativo do seu alvo. Ao observarmos essa cena, compreendemos a lógica destrutiva que dá fundamento às políticas discriminatórias, isto é, a concepção distorcida de que corpos vulnerabilizados devem rivalizar entre si. Essa dinâmica facilita, no fim das contas, a manutenção das práticas de violência política que não precisam demonstrar seus projetos à medida em que criam uma atmosfera bélica entre grupos subalternizados. Ao rivalizar entre si, grupos precarizados atuam como vetores sistêmicos das políticas de morte que se logram do genocídio, simbólico e material, de todo corpo designado à distância da norma.

Os sistemas de poder insistem em nos fazer compreender a realidade numa dinâmica bélica, hierárquica e subalternizante. A conjuntura normativa que se instala em torno da masculinidade, da brancura e da ciseteronorma, como sistemas políticos, dá forma de violência para a realidade. No fim das contas, é preciso que os sujeitos reconheçam a sua localização social e, mais, identifiquem que as dinâmicas de violação não resguardam corpos designados como dissidentes.

A vantagem política é provisória. Ela se distingue amplamente do privilégio à medida em que o sujeito, sob os efeitos da vantagem, age conforme a estrutura de poder que incide contra a sua própria presença. O privilégio é um produto das políticas de continuidade, das articulações de poder que reforçam lugares sociais e que acirram amplamente as desigualdades sociais. A vantagem, ao contrário, faz com que sujeitos se sintam protegidos pelo espectro da estrutura, do poder, mas que sejam, ao mesmo tempo, denunciados por se distanciarem da norma.  Logo, a raça, a territorialidade, o gênero, a sexualidade e demais marcadores de diferença, servem à lógica discriminatória que se logra da violência entre sujeitos subalternizados, naturalizando, no bojo de sua experiência social, a inimizade. Por meio desses marcadores, grupos hegemônicos fazem com que acreditemos que as nossas diferenças são, na verdade, as motivações para o extermínio e, nesse ínterim, dissimulam a sua presença torpe, bélica e autofágica. É imprescindível que sejamos capazes de romper com essa lógica, com essa atmosfera que recusa a solidariedade como pressuposto ético-político e que possamos reconhecer nas estruturas ideológicas, hegemônicas e violentas, o nosso real inimigo.

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