O antro das cláusulas abusivas: o contrato de “crédito fácil”

O antro das cláusulas abusivas: o contrato de “crédito fácil”

crédito fácil

Como se sabe, em nosso país opera uma articulada indústria do “crédito fácil”, que preda o mercado consumidor através do oferecimento publicitário agressivo de crédito a partir de contratos que fogem à compreensão do consumidor leigo, haja vista a imposição de condições e cláusulas nebulosas aos olhos do consumidor, per si, vulnerável. Não é por menos que dados recentes indicam que a aquisição de dívidas mais que dobrou no último ano,1 reforçando a catástrofe socioeconômica do superendividamento.

Tal fenômeno, conhecido como o Superendividamento, segundo a égide do sociólogo Zygmunt Bauman,2 não foge à natureza humana. Em verdade, a afobação por descartar o velho e o obsoleto, convém na tentação de angariar crédito assinando um compromisso sem atentar-se às reais condições contratuais. Nota-se que a “inclusão econômica”3 pela abertura de mais propostas de crédito através da desculpa de direitos sociais abriu às portas de instituições financeiras aos consumidores mais vulneráveis, casos de idosos e analfabetos.

Assim sendo, é preciso que o consumidor de crédito adote uma linha custo/benefício, ao invés de desprezar a lógica racional, e, simplesmente, ceder à sedução do crédito fácil e do consumo como substituto afetivo, evitando a supervalorização a gratificação instantânea em detrimento de um possível (próximo, mas visto como distante), custo futuro.4

Deste modo, é fundamental que o consumidor se atente a possíveis violações propiciadas por cláusulas tidas como sendo abusivas em nosso CDC, capazes de afearem a nulidade do contrato estabelecido. A começar pelo inciso I do art. 51, conhecido por apresentar o rol exemplificativo – que fique claro – das cláusulas abusivas, em que se tem a previsão de nulidade para toda e qualquer cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Como no caso hipotético em que o dever de informação foi omitido quando o contrato de crédito deixou de prever a taxa de juros real, quiçá de calcular a projeção de incidência de juros sobre juros ao longo do período de quitação do crédito. Tal inciso, portanto, elucida as “cláusulas de irresponsabilidade”, muito comuns em contratos de adesão.5

Não obstante, cláusulas contratuais semelhantes fogem ao dever de informação do art. 3º do CDC por trazerem informações insuficientes, incongruentes e, principalmente, vagas, no sentido de exemplificarem os valores aos quais o consumidor se submete ao se submeter a contrato de crédito. O que força o consumidor, em muitos casos, a buscar o judiciário com a finalidade de conhecer — por força de ações exibitórias — as cláusulas a que se submeteu,6 pasmem.

Por consequência, válida a menção ao inc. IV, no qual se afere nulidade à cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. Isso em vista do reto seguimento ao equilíbrio contratual e material entre parcelas, sendo claramente abusivas quaisquer cláusulas que firam a boa-fé e equidade.7 Caso de precedentes jurisprudenciais que limitam os descontos efetuados a título de empréstimos consignados, ao montante de 30% do salário mensal do consumidor, sob pena de configurar-se o confisco, a par da natureza alimentar da remuneração – súm. 295, TJRJ.8

Aliás, a julgar pelo fulcro da atuação das cláusulas abusivas, é preciso apontar também os incisos X, XIII e XV, por aferirem imediata nulidade quando a cláusula permita, ao fornecedor, variar o preço de maneira unilateral; bem como a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração; e que esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, isto é, em análise nossa, qualquer uma que traga desigualdade material, ameaçando o equilíbrio contratual.

Por suposto, finda-se pela menção ao parágrafos 1º do já mencionado art. 51, o qual despende em seus incisos por decretar “exageradas” as disposições contratuais que restrinjam direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; que se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. Cabendo ainda no parágrafo 2º a nulidade ao contrato excepcionalmente quando a presença de cláusula contratual abusiva, ou sua falta, não interferirem no ônus excessivo a qualquer das partes. O que remete diretamente à boa-fé objetiva dos contratos.

Em suma, a abusividade de cláusulas é recorrente em nosso mercado de crédito, afinal, estar-se-á a lidar com um fornecedor altamente articulado em contraposição a uma gama notável de hipervulneráveis, e que, portanto, não possuem expertise semelhante, quiçá, proporcional ao de seu contraposto polo. Assim, é natural que a relação contratual seja ditada pelo polo que tenha a estrutura capaz de melhor compreender o fenômeno que é o consumo e, assim, exercê-lo conforme seus interesses, ainda que isso influa numa total exploração das debilidades e ingenuidade do seu oposto, lhe trazendo o que consumeristas da seara econômica denominam heavy burden, o “fardo pesado” que simboliza o Superendividamento.

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Túlio Coelho Alves

 

Referências

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1. ALCÂNTARA, Paulo Augusto Franco de. Inclusão financeira, consumo de crédito e o superendividamento pessoal no Brasil. In: Antônio José Maristrello Porto et al (Org.). Superendividamento no Brasil. Curitiba: Juruá, 2017, p. 80.

2. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 31.

3. ALCÂNTARA, Paulo Augusto Franco de. Inclusão financeira, consumo de crédito e o superendividamento pessoal no Brasil. In: Antônio José Maristrello Porto et al (Org.). Superendividamento no Brasil. Curitiba: Juruá, 2017, p. 72.

4. GAULIA, Cristina Tereza. Superendividamento: um fenômeno social da pós-modernidade Causas invisíveis – soluções judiciais eficazes In: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de; MARQUES, Claudia Lima (Orgs.). Direito do consumidor endividado II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Editora RT, 2016, p. 59.

5. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 437.

6. STJ – EDcl no AG 1387949 MG 2011/0017479-1, Relator: Min. Isabel Galloti. Dia de Julgamento: 20/08/2015. T4 – Quarta Turma, Dia de Publicação: 27/08/2015. Disponível em: https://bit.ly/3segcQP. Acesso em: 12 ago. 2021.

7. STJ – Resp: 158728 RJ 1997/0090585-3, Relator: Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Data de Julgamento: 16/03/1999, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: 17/05/1999. Disponível em: https://bit.ly/2VRRLwI. Acesso em: 12 ago. 2021.

8. TJRJ – APL: 00043260720148190002, Relator: Des(a). Denise Levy Tredler, Data de Julgamento: 20/08/2019, Vigésima Primeira Câmara Cível. Disponível em: https://bit.ly/3jQZDqt. Acesso em: 12 ago. 2021.

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