O Caso Bruna e A Lei 14.994/2024: Muito Além Das Estatísticas

O Caso Bruna e A Lei 14.994/2024: Muito Além Das Estatísticas

mão feminina protegendo o corpo de agressões

No dia 13 de abril, desapareceu em São Paulo Bruna Oliveira da Silva, 28 anos, estudante da USP (havia sido aprovada para cursar mestrado de pós-graduação em mudança social e participação política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.). A jovem se encaminhava à casa onde o filho menor se encontrava, com o avô, após passar alguns dias fora de seu domicílio em observância ao direito de convivência do pai da criança (que ficara com o genitor).  Desceu no terminal Itaquera do metrô às 22: 00 horas e, encontrando dificuldade para contatar veículo de transporte por aplicativo, resolveu caminhar em direção ao local onde o filho se encontrava, trajeto a ser realizado em cerca de dez minutos, por volta de 22: 20 horas. Seguiu-se o desaparecimento de Bruna com a descoberta de seu corpo às vésperas do feriado religioso da Páscoa, nos fundos de um estacionamento na zona leste da Capital, quatro dias depois do último contato da vítima, encontrada inerte com marcas de agressão e roupas íntimas. O IML informou a realização de exames para discriminar a causa da morte, com o levantamento de hipótese, pelos peritos, de que a jovem “pode ter sido agredida, queimada e asfixiada, com avaliação de eventual violência sexual”1. Bruna foi descrita por familiares como uma mulher feminista que lutava contra a violência de gênero. Ostentaria, à semelhança de milhares de brasileiras, conforme noticiado pela imprensa, dificuldades de relacionamento com o pai de seu filho incapaz e com o próprio genitor, com o qual residiria2.

A barbárie supra descrita, inserida no contexto de crescente violência na maior capital do país, ainda ganhou contornos absolutamente chocantes com a divulgação de vídeos do trajeto de Bruna pela via pública, até ser abordada pelo meliante. Câmeras de segurança, inseridas em diversos pontos do caminho, testemunharam a tragédia de modo quase sensacionalista, sem qualquer eficácia dos aludidos aparatos no sentido de evitá-la.

A Lei 14.994/2024, denominada como “Pacote Antifeminicídio”, publicada em outubro passado, alterou o Código Penal, a Lei das Contravenções Penais, a LEP, a Lei de Crimes Hediondos, a Lei Maria da Penha e o Código de Processo Penal para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência contra a mulher.

O feminicídio passou a ser previsto no artigo 121-A do Código Penal, deixando de figurar como qualificadora do crime de homicídio, com aumento de pena de 12 a 30 para 20 a 40 anos de reclusão, criação de regra especial para concurso de agentes (artigo 121-A, parágrafo terceiro), exclusão da incidência ao delito das qualificadoras subjetivas do motivo fútil e torpe (artigo 121, V), transformação das qualificadoras objetivas dos incisos III , IV e VIII do homicídio em causas de aumento de pena de 1/3 até a metade, para o feminicídio (artigo 121-A, parágrafo segundo, V , CP), proteção aos órfãos do feminicídio, com aumento de pena quando se tratar de vítima mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade (art 121, parágrafo segundo, I, parte final), hipótese do ilícito que vitimou Bruna, retorno do aumento de pena para vítima de feminicídio menor de 14 anos (art 121, parágrafo segundo, II). De modo automático, ademais, aplicar-se-á perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, reconhecida a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela, nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou descendente; vedação da nomeação , designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena; prescreveu-se que a motivação do ilícito, correspondente ao gênero feminino, implicará em aumento de penas em delito de ameaça e contravenção penal, subsistindo o caráter hediondo do feminicídio, a tramitar de modo prioritário procedimentos, com fiscalização mais intensa através do uso de tornozeleira eletrônica dos detentos em saídas temporárias e possibilidade de transferência de estabelecimento prisional daqueles que perpetrarem violência doméstica e familiar, abarcando parentes da vítima, além desta, durante o cumprimento da pena.3, dentre outras alterações.

O feminicídio de Bruna Oliveira da Silva está sendo investigado pelas autoridades e merecerá, ao que toda a sociedade aguarda e exige, a indispensável reprimenda, à luz das normas jurídicas vigentes, especialmente aquelas bem conformadas no pacote antifeminicídio.

A questão que urge dirimir, todavia, não é a reprimenda. Mas a naturalização e a extrema facilidade com que são cometidos feminicídios em profusão, prevalentemente por autores de gênero masculino.

A subjugação da vítima e sua redução à utilidade do respectivo sexo biológico não podem ser enfocadas sem lentes do estudo de gênero. É imprescindível, outrossim, que nos debrucemos sobre textos alusivos a direitos humanos para tentarmos, não assimilar a perfídia e suas consequências intoleráveis, mas as razões para que câmeras de segurança apostas em postes e edifícios situados no trajeto percorrido por Bruna enquanto transeunte tenham presenciado, silenciosamente, a tragédia inominável.

Vivenciamos efetivamente uma crise de legalidade, sérios conflitos fomentados pela intolerância ao diverso e , acima de tudo, estamos insertos em uma sociedade visceralmente individualista e indiferente.

Morreu uma jovem estudante. Morreu a filha de alguém, a namorada que sonhava em ser feliz e constituir nova entidade familiar. Morreram os sonhos de Bruna. Mas acima de tudo, morreu a mãe de um menino de sete anos.

Não basta, portanto, o endurecimento de penas, embora a circunstância represente fato necessário. Acima de tudo, é a sociedade que precisa se identificar com a tragédia que aniquila outrem e abandonar a postura de contemplação inerte.

Nunca será suficiente que a vítima não nos seja próxima. Ela, em verdade, faz parte de todos nós.

Referências

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1.  www.g1.globo.com, matéria veiculada em 22/04/2025 por Kleber Tomaz, Carlos Henrique dias, Lucas Jozino, g1 SP e TV Globo São Paulo, com acesso em 23/04/2025;

2. www.metropoles.com, matéria veiculada em 21/04/2025, Isabela Thurmann, acessado em 23/04/2025;

3.   www.site.mppr.mp.br, matéria publicada em 15/10/2024, acessada em 23/04/2025;

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