Muitos devedores quando estão na iminência de perder os seus imóveis celebram com terceiros o famoso contrato de gaveta, que nada mais é do que um pacto escondido, não registrado e que sequer chegará ao conhecimento da instituição financeira credora e de eventual arrematante do imóvel em leilão, o contrato fica literalmente na gaveta.
A prática acima, com o devido respeito, é bastante precária e possui vícios gravíssimos, ela jamais será uma saída para o devedor, muito pelo contrário, poderá ser fonte de novos problemas, pois certamente trará prejuízos enormes para esse terceiro, que provavelmente perderá o imóvel a partir do momento no qual for arrematado em um leilão.
O Código Civil (Art. 108) foi bastante claro em exigir a escritura pública de compra e venda para as transações envolvendo imóveis que ultrapassam o equivalente a 30 vezes o salário mínimo nacional, que praticamente ocorre com todos, visto que raramente temos residências abaixo de 30 salários, mesmo as mais populares.
Não se ignora que a transferência de uma propriedade somente ocorre com o registro da escritura pública na respectiva matrícula (Art. 1.245 do CC/02), logo, como sequer registrado é o contrato de gaveta, não ocorreu transferência alguma, esse terceiro sequer proprietário do imóvel é.
Inclusive tanto o gaveteiro quanto o devedor não podem exigir que o contrato precário entabulado entre eles seja oponível em face do arrematante, pois a doutrina e a Lei são claras em afirmar que somente pode ser oponível o que estiver registrado e gozar de publicidade:
Para garantir a oponibilidade e preservar da inoponibilidade a todos os terceiros, o direito dá ao ato jurídico publicidade. Esta é assegurada mediante lançamentos em serviços especiais, criados pelo Estado e operados por ele (o registro de empresas mercantis serve de exemplo) ou por particulares (ou tabeliães e registradores, referidos no art. 236 da CF e na LRP), aos quais delega a execução de serviço. (CENEVIVA, 2010, p. 107).1
Portanto, o contrato de gaveta jamais poderá vincular quem sequer sabia de sua existência e tampouco o assinou, visto que “a regra é de que os efeitos do contrato atingem somente as partes contratantes, produzindo consequências pessoais e patrimoniais restritas somente a elas, não gerando vinculações com terceiros” (DE AQUINO, 2021, p. 87).2
Mais grave ainda é o contrato de gaveta envolvendo imóveis objeto de alienação fiduciária, visto que, nesse tipo de operação, a propriedade resolúvel foi transferida ao banco, o devedor ficou somente com a posse direta (Arts. 22 e 23 da Lei 9.514/1997), a respeito da propriedade resolúvel, a doutrina esclarece o seguinte:
O devedor, fiduciante, transmite ao credor, fiduciário, uma propriedade resolúvel, denominada pela própria lei de propriedade fiduciária, cuja característica é a limitação temporal do domínio do devedor.
Tal limitação decorre do seguinte fato: uma vez paga a dívida na sua integralidade pelo devedor, o bem, anteriormente transmitido ao credor, retorna ao seu patrimônio, automaticamente e por força de lei, com efeitos ex tunc, ou seja, retroativos. (DANTZGER, 2021, p. 61).3
Pois bem, considerando o acima citado, caso o devedor inadimplente tenha prometido ao terceiro a propriedade, infelizmente ele está tentando transferir algo que não possui, ou seja, a sua situação vai ficando cada vez mais delicada, podendo causar prejuízos enormes e no futuro ser processado por esse gaveteiro que certamente se sentirá ludibriado.
E que não se argumente que esse terceiro adquiriu em função do contrato de gaveta uma posse legítima e capaz de gerar o direito à usucapião, visto que é assente no Superior Tribunal de Justiça que, em se tratando de imóveis financiados pelo Sistema Financeiro de Habitação, não corre em favor do possuidor a prescrição aquisitiva pela usucapião.
Decidiram os(as) ministros(as) do STJ: “A posse de bem por contrato de alienação fiduciária em garantia não pode levar a usucapião, seja pelo adquirente seja por cessionário deste, porque essa posse remonta ao fiduciante, que é a financiadora, a qual, no ato do financiamento, adquire a propriedade do bem cuja posse direta passa ao comprador fiduciário, conservando a posse indireta (lhering) e restando essa posse como resolúvel por todo o tempo, até que o financiamento seja pago.” (STJ, REsp n. 844.098/MG, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 06.11.2008).
(…)
Decidiram os(as) ministros(as) do STJ: (…) 5. O imóvel da Caixa Econômica Federal vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação, porque afetado à prestação de serviço público, deve ser tratado como bem público, sendo, pois, imprescritível. (STJ, REsp n. 1.448.026/PE, rel.ª Min.ª Nancy Anrighi, j. 17.11.2016). (PEIXTO, 2021, p. 36/39).4
Como se não bastasse o entendimento do STJ ora invocado, não se ignora que o próprio Código Civil (Arts. 1.200 e 1.208) trata a posse clandestina como injusta, não podendo ser invocada para fins de usucapião, a doutrina vai além e reforçar que, nos contratos de alienação fiduciária, o terceiro que toma posse por meio de contrato de gaveta, não poderá aproveitar a sua situação de clandestinidade para usucapir o bem, cito:
Nesse caso, a clandestinidade da posse frente ao legítimo proprietário resolúvel e possuidor indireto inviabilizará o reconhecimento do direito possessório e, por via de consequência, também de eventual pretensão de aquisição da propriedade do mesmo pela usucapião. Nesse sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça já entendeu que “a transferência a terceiro de veículo gravado com propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do CC/2002), sendo, por isso mesmo, impossível a aquisição do bem por usucapião.” (REsp nº 881.270/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 2/3/2010). (DE MELO; PORTO, 2023, p. 48).5
Assim sendo, pode o arrematante exigir que o gaveteiro se retire do imóvel, inclusive o arrematante tem o direito de propor a ação judicial competente para conseguir a sua posse pela primeira vez com fundamento no direito de propriedade, vejamos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Imissão na posse. Decisão que deferiu a tutela de urgência determinando a desocupação do bem em 15 dias. Imóvel adquirido pelos autores por leilão extrajudicial. Contrato de gaveta firmado pelos réus, com terceiros, após a consolidação da propriedade em nome do banco fiduciante, não é oponível aos adquirentes. Negado provimento. (TJSP, Agravo de Instrumento 2294250-41.2022.8.26.0000, DJe: 26/02/2023).6
Diante do exposto encerro o presente escrito defendendo que o contrato de gaveta não possui a menor validade em face do arrematante de um imóvel em leilão (judicial e extrajudicial), pois é um documento precário, escondido e não anuído, tendo o arrematante o direito de exigir a desocupação do imóvel adquirido, inclusive por meio de liminar com fulcro na Súmula n. 4 do TJ-SP.
Referências
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1. CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada, 20ª Ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
2. DE AQUINO, Leonardo Gomes. Teoria Geral dos contratos, Belo Horizonte: Editora Expert, 2021.
3. DANTZGER, Afrânio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis: Lei 9.514/1997 Aplicação prática e suas consequências. 6ª Ed. São Paulo: JusPODIVM, 2021.
4. PEIXOTO, Ulisses Vieira Moreira. Usucapião e Usufruto, Inventário e Partilha, Divórcio e União Estável, Protesto e Outros Documentos de Dívida, Demarcação e Divisão de Terras Particulares Extrajudiciais, 3ª ed.rev.atual.ampl, Leme: Editora Mizuno, 2021.
5. DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; PORTO, José Roberto Mello. Posse e Usucapião: Direito Material e Direito Processual, 4ª Ed: Editora Juspodivm, 2023.
6. TJSP; Agravo de Instrumento 2294250-41.2022.8.26.0000; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I – Santana – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/02/2023; Data de Registro: 26/02/2023