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O crime continuado na jurisprudência do STJ

Processo

Os casos práticos que versam sobre concurso de crimes são bastante comuns e nos coloca na fronteira entre a teoria do delito e a teoria da pena, sob destacada influência dos princípios da equidade e da proporcionalidade que delimitam critérios rígidos de política criminal. Como de praxe, a partir de um julgado do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que aborda o crime continuado, busca-se compreender como se aplicam as regras pertinentes a essa espécie de concurso de crimes em situações concretas.

 

Vejamos esse caso, muito sinteticamente apresentado: um determinado sujeito, a que chamaremos de “A”, foi condenado em primeira instância, pela prática dos crimes de estupro de vulnerável (art. 217-A, CP) e estupro qualificado (art. 213, §1º, CP), em concurso material entre si e em continuidade delitiva em relação a cada um dos blocos delitivos. O juiz, sobre cada cadeia de crime continuado, fixou a fração máxima prevista no art. 71, caput, do CP1 , ou seja, aplicou a pena para o estupro de vulnerável, aumentada em  ⅔, bem como a pena para o estupro qualificado também acrescida do mesmo patamar. Não houve reconhecimento, como visto, de continuidade delitiva entre ambas espécies de crime (estupro de vulnerável e estupro qualificado), uma vez que tais delitos não são crimes da mesma espécie, uma vez que tutelam bens jurídicos diversos e possuem circunstâncias elementares também diversas (STJ, 2023).

Esses delitos sexuais foram praticados por “A” no decorrer de quatro anos, entre os 11 (onze) e 15 (quinze) anos de idade da vítima, delitos estes que passaram a fazer parte da rotina da então criança e estenderam-se até o início de sua adolescência. Em razão da duração, da ininterruptibilidade e da frequência dos crimes, não foi possível precisar a quantidade exata de atos sexuais praticados para fins de medição do grau de reprovabilidade, circunstância esta reconhecida em sentença (STJ, 2023).

Face à condenação de “A”, sua defesa recorreu ao Tribunal de Justiça (TJ), onde suscitou, basicamente: a) o redimensionamento da pena concretamente aplicada, para afastar os ⅔ aplicados (fração máxima de majoração estabelecida pelo citado art. 71, caput, do CP), sob a alegação de que a delimitação quantitativa é imprescindível, segundo o STJ2 , para o cálculo do plus sancionatório incidente nas hipóteses de continuidade delitiva simples, segundo critérios jurisprudenciais objetivos; b) o reconhecimento da continuidade delitiva entre o estupro de vulnerável e o estupro qualificado, por serem, pretensamente, delitos de igual espécie (STJ, 2023).

O TJ deu provimento ao apelo defensivo. Em seguida, o Ministério Público (MP) interpôs recurso especial junto ao STJ, onde expôs contrapontos à defesa apoiados nos termos da sentença condenatória que pretendia restabelecer (STJ, 2023).

A Terceira Seção do STJ, em junho deste ano, afetou o processo à sistemática dos Recursos Especiais Repetitivos, ao admitir o seguinte Tema n. 1.202: Possibilidade de aplicação da fração máxima de majoração prevista no art. 71, caput, do Código Penal, nos crimes de estupro de vulnerável, ainda que não haja a indicação específica do número de atos sexuais praticados (STJ, 2023).

No mérito, o STJ deu provimento ao recurso ministerial, fixando, por conseguinte, nos termos do art. 927, inciso III, c/c art. 1.039 e seguintes, do Código de Processo Civil, a seguinte Tese: “No crime de estupro de vulnerável, é possível a aplicação da fração máxima de majoração prevista no art. 71, caput, do Código Penal, ainda que não haja a delimitação precisa do número de atos sexuais praticados, desde que o longo período de tempo e a recorrência das condutas permita concluir que houve 7 (sete) ou mais repetições” (STJ, 2023).

Para se compreender o caminho percorrido até se chegar a essa conclusão, fixada na citada tese, primeiramente, busca-se a doutrina em retrospecto como  alternativa mais confiável.

Segundo Martinelli e Bem, ocorre o concurso de crimes quando um mesmo agente, individualmente ou em codelinquência, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, mediante uma ou várias condutas (Martinelli; Bem, 2019, p. 864). Para a saciedade do ímpeto de justiça e razoabilidade, a atribuição de pena para o agente que comete apenas um delito não deverá ser a mesma para quem pratica mais de um. Por essa razão, o estudo do concurso de crimes é tão próximo à teoria da pena sem levar, entretanto, desinteresse à teoria do delito, vez que o sistema de imputação subjacente ao tema milita com as categorias conceituais de ação e resultado, típicas desta última.

Há, basicamente, três tipos básicos de concursos de crime, a saber, o concurso material (ou real), o concurso formal (ou ideal) e o crime continuado, que se diferenciam conforme a combinação de possibilidades hipoteticamente implementáveis: várias ações com vários resultados (concurso material); uma ação com vários resultados (concurso formal); e várias ações com um resultado (crime continuado).

Assim como são cambiáveis as possibilidades de formas de realização delitiva e atribuição de responsabilidade, também são as direções legislativamente projetadas para a individualização da pena correspondente. O CP adotou dois sistemas de aplicação sancionatória teoricamente elaborados, quais sejam, o do cúmulo material (correspondente à soma aritmética das penas de cada um dos crimes praticados) e a da exasperação (que permite a aplicação da pena do crime mais grave, com um incremento numérico variável conforme a quantidade dos crimes perpetrados). Pois bem. Segundo o CP, em seus arts. 69, 70 (segunda parte) e 72, o cúmulo material é aplicável nos casos de concurso material, concurso formal imperfeito (ou impróprio) e no concurso de penas de multa. Por conseguinte, aplica-se ao concurso formal perfeito (ou próprio) e ao crime continuado, na esteira dos arts. 70 (primeira parte) e 71.

Passa-se à análise amiúde do crime continuado. Este, especificamente, ocorre quando “o agente, mediante mais de uma conduta (ação ou omissão), pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, devendo os subsequentes, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, ser havidos como continuação do primeiro” (Bitencourt, 2017, local 1.276). Explica Busato:

A figura do crime continuado diz respeito a casos de várias condutas que produzem vários resultados, mas que, por razões político-criminais, não podem ser tratadas pela regra do cúmulo material. O crime continuado é uma ficção onde uma situação aparentemente de concurso material é tratada com regras semelhantes ao concurso formal, em face da específica situação de tempo, lugar, modo de execução e outras circunstâncias relativas ao crime (Busato, 2018, p. 902).

Para se delimitar se se está defronte de um crime continuado ou não, é mister a averiguação da incidência dos requisitos objetivos previstos no art. 71, do CP, a saber: a) pluralidade de condutas; b) pluralidade de resultados, ou seja, que seja praticado mais de um delito; c) os crimes devem ser da mesma espécie (esse ponto será melhor desenvolvido adiante); e, por fim, a ocorrência de um nexo de continuidade delitiva inferida da significação atribuída a condições de tempo, lugar, modo de execução e outras condições semelhantes3 . Dessa forma, o CP, a princípio, adota a teoria objetiva como régua modular de apuração dos pressupostos materiais de constituição do crime continuado. Entretanto, a jurisprudência do STJ assimila a teoria mista ou objetivo-subjetiva4 , a exigir, além dos requisitos objetivos acima, um elemento subjetivo que vincula e abrange todas as infrações inerentes a essa modalidade, correspondente a “uma unidade de desígnios, isto é, uma programação inicial, com realização sucessiva (…)” (Bitencourt, 2017, local 1.659).

Busato ressalta que a tese objetiva no CP tem uma razão clara de ser, uma vez que o dolo, numa perspectiva de ação significativa, é uma estrutura axiológico-normativa, e não ontológico-psíquica (como acolhido pelo finalismo), passando a ser compreendido como uma atribuição significada, ou lida, a partir de elementos indicativos externos da continuidade delitiva e da pretensão do agente (Busato, 2018, p. 909-910).

Considerando o caso julgado pelo STJ , acima em destaque, verifica-se a presença de todos os requisitos legais que conduzem à conclusão de que, de fato, se está defronte de um episódio de continuidade delitiva, ou melhor, de uma sucessividade de duas cadeias continuistas autônomas, uma referente ao crime de estupro de vulnerável e a outra, ao estupro qualificado, submetidas, cada qual, às regras do crime continuado.

O estupro de vulnerável foi praticado reiteradamente, em condições símiles de tempo, lugar, modo de execução e semelhantes  de forma que é possível inferir que os atos subsequentes são um continuum do primeiro. Da mesma forma, quando a vítima atingiu seus 14 (catorze) anos, uma nova cadeia continuista de atos sexuas iniciou-se sob uma figura típica diversa, configurando o estupro qualificado, também em continuidade delitiva, a permitir a inferência de que os atos subsequentes ao primeiro são continuação deste.

O caso concreto conforma-se à modalidade simples do crime continuado, a atrair, no terreno do sopesamento da pena, o regime da exasperação, nos termos do art. 71, caput, do CP. Em outros termos, aplica-se a pena do crime (se idênticos), aumentada de ⅙ a ⅔. A mesma operação é válida para a cadeia continuista autônoma correspondente ao estupro qualificado. A exasperação também é adotada para o crime continuado específico (ou qualificado) (que será trabalho abaixo), porém, com a possibilidade de elevação até o triplo da pena (art. 71, §1º, CP).

Esse ponto merece atenção. A dosagem do incremento sancionatório dependerá, conforme a jurisprudência do STJ, da quantidade de condutas perpetradas, justificando maior desvalor atribuído às ações e aos resultados respectivos. É o que diz a Súmula 659, do STJ: “A fração de aumento em razão da prática de crime continuado deve ser fixada de acordo com o número de delitos cometidos, aplicando-se 1/6 pela prática de duas infrações, 1/5 para três, 1/4 para quatro, 1/3 para cinco, 1/2 para seis e 2/3 para sete ou mais infrações”.

Nesse ponto, em havendo a comprovação de que os atos sexuais se deram reiteradamente e diante da impossibilidade de quantificação de quantos abusos ocorreram, de maneira que por certo ultrapassaram mais de sete infrações, correta a aplicação do incremento em patamar máximo, por atender critérios jurisprudenciais objetivos alinhados ao propósito de individualização da pena e proporcionalidade, sobretudo no contexto de violência sexual contra crianças e adolescentes, uma mazela social crônica que consolida estatastícas infames.

Quanto aos requisitos temporal e espacial, de uniformidade das condições de tempo e lugar em que perpetradas as infrações penais, o STJ firmou o entendimento de que a continuidade delitiva, em regra, ​​não pode ser reconhecida quando se tratarem de delitos praticados em período superior a 30 (trinta) dias5 e, por outro lado, o benefício pode ser reconhecido quando se tratarem de delitos ocorridos em comarcas limítrofes ou próximas6 . Ao que tudo aponta, no caso julgado, atenderam-se a essas condicionantes.

Um ponto em aberto deixado propositadamente para o último momento antes de encerrar o tópico referente ao crime continuado simples refere-se ao que se entende por “crimes de mesma espécie”. No caso em destaque, que serve de ponto analítico para este breve estudo, o STJ rechaçou a alegação da defesa de “A”, o agressor, que pugnava pelo reconhecimento da continuidade delitiva entre o estupro de vulnerável e o estupro qualificado. Em palavras mais singelas, as duas cadeias continuístas autônomas passariam a ser uma apenas, monolíticas, com repercussão direta na dosimetria final da reprimenda.

O rechaço da tese defensiva alinha-se à jurisprudência consolidada desse tribunal e do STF, que entendem que, para serem crimes de mesma espécie, estes devem integrar o mesmo tipo penal, independentemente se se trata de forma simples, privilegiada ou qualificada. Apesar de comporem o mesmo gênero (crimes contra a dignidade sexual), estupro de vulnerável e estupro qualificado estão submetidos a tipos penais distintos, assim como são distintos os bens jurídicos atingidos (o primeiro tutela a dignidade sexual e o direito ao desenvolvimento da personalidade livre de abusos, enquanto o segundo protege a a liberdade sexual e o direito ao exercício da sexualidade sem coações) (STJ, 2023).

Até aqui, falou-se, em termos genéricos, do crime continuado simples, talhado pelo art. 71, caput, do CP. Por outro lado, há o crime continuado específico (ou qualificado), segundo denominação atribuída pela doutrina para a hipótese prevista no §1º do mesmo dispositivo legal. Segundo sua redação, “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código”.

Nota-se a presença de requisitos adicionais, cumulativamente reunidos, para a configuração do crime continuado específico, tais como: a) prática de crimes dolosos; b) mediante o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa; e c) contra vítimas diferentes. Trata-se do exemplo comum de ações provocadas por serial killers. Com a inserção desse regramento, tem-se a insubsistência da Súmula 605, do Supremo Tribunal Federal (STF), que vedava o reconhecimento da continuidade delitiva em crimes contra a vida.

Para Martinelli e Bem, o termo “violência”, ao se referir à pessoa vitimada, deve ser interpretado restritivamente, restringindo-se apenas à força física (Martinelli; Bem, 2019, p. 880). Dessa forma, a violência presumida não se insere na idealização legislativamente colocada. Essa compreensão foi reforçada recentemente pelo STJ, em julgado publicado em seu Informativo 786, quando se abriu a oportunidade para corroborar que “Não incide a regra a continuidade delitiva específica nos crimes de estupro praticados com violência presumida”7 .

 

Notas

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1. Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

2. Vide: HC n. 342.475/RN, Sexta Turma, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 23/02/2016; AgRg no HC n. 756.132/DF, Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 1/9/2023.

3. Quanto a este último requisito, Bitencourt esclarece que “deve existir, em outros termos, uma certa periodicidade que permita observar-se um certo ritmo, uma certa uniformidade, entre as ações sucessivas, embora não se possam fixar, a respeito, indicações precisas” (Bitencourt, 2017, local 1.280).

4. AgRg no HC n. 818.723/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 5/10/2023.

5. AgRg no AREsp n. 2.274.671/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 3/10/2023; AgRg no REsp n. 1.503.538/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 8/5/2018, DJe de 21/5/2018.

6. AgRg no HC n. 818.723/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 5/10/2023.

7. Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 5/9/2023, DJe 8/9/2023. Vide também: REsp 1.602.771/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 27/10/2017; PET no REsp 1.659.662/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 14/5/2021.

 

Referências

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2017;

BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral: volume 1. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2018;

MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 4 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 2.029.482/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023. Tema 1202. Disponível em: link. Acesso em: 3 nov. 2023.

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