A indústria da moda se baseia em constantemente superar os paradigmas usuais e tradicionais, causando impacto estético, social, munida de fortes críticas nas apresentações visuais vinculadas aos seus produtos. A moda para além de mera vestimenta e adorno, é um elemento de cognição, de representação imagética de parte marcante da personalidade do indivíduo, dessa forma ele se reconhece: eu sou; mas também pode ser considerado como um forte elemento de conexão exógeno, do usuário de determinado estilo com um grupo, tribo, ideologia e princípios que representa.
Cores, símbolos, modelos e modelagens compõe uma mensagem que o usuário da peça de roupa quer transmitir para a sociedade, esse conjunto também pode traduzir status social, poder aquisitivo, conformidade ou insurgência contra algum sistema, regime ou instituição.
As grandes marcas, com suas cores singulares, logotipos e anagramas, alcançam sua reputação no mercado, a ponto de seus símbolos serem reconhecidos em qualquer peça de roupa, e junto com esse reconhecimento, todo valor agregado da marca, como reputação, ideologias, posicionamentos políticos e sociais são indistintamente reconhecidos.
Importante entender também que a moda é um processo criativo, em que pessoas engajadas em sua criação e produção empreendem esforços e conhecimentos para seu desenvolvimento, a ponto de merecer proteção jurídica contra contrafação, plágio e vilipêndio de sua marca.
De forma ilustrativa, analisemos o caso do solado vermelho do sapato Louboutin. Por uma luta que perdurou por quase dez anos, Christian Louboutin lutou com a justiça europeia para reconhecer a exclusividade marcária dos seus solados vermelhos.1 O TJUE reconheceu em 2018 que a aplicação de um determinado pantone de cor aplicado a uma parte específica de um produto, constitui uma marca distinta e suscetível de proteção.
Ocorria no caso que o solado vermelho específico era de fato um sinal distintivo da grife e que outras marcas tentavam se parasitar desse sinal distintivo para poder agregar valores inerentes aos do Louboutin para vender seus sapatos.
Mas assim como algumas marcas conseguem parasitar a simbologia e status de uma outra marca, o oposto também é plenamente possível: uma marca pode utilizar signos protegidos de outra de forma que cause confusão e diluição de sua reputação.
Assim começamos a análise dos Satan shoes, ou melhor, dos sapatos do Satã. Um coletivo de artes baseado no Brooklin/NY, cujo nome e notoriedade são reconhecidos no mundo da moda, tendo customizado bolsas da Hermès Birkin e inclusive já customizado um sneaker da Nike, intitulando-o de “God´s shoes”, adquirido inclusive pelo rapper Drake, em que o modelo consiste em um tênis branco com crucifixo e águas da Jordânia no seu solado, resolveu desafiar os costumes cristãos conservadores da sociedade dos Estados Unidos.
Em parceria com o rapper gay Lil Nas´X, o coletivo artístico, utilizando um Nike Air Max 97s preto de base, os criadores customizam o calçado, adornando-o com um pentagrama invertido, inscrição do versículo Luke 10:18 da bíblia2 e a numeração “666”. O mais impactante para os consumidores foi o fato de que o calçado foi injetado com 66 cc de sangue humano doado por apoiadores do projeto. Essa parceria diabólica produziu 666 pares do modelo, que venderam instantaneamente, salvo o exemplar de nº 666 que foi separado para ser vendido em leilão virtual.
A grande confusão se iniciou quando Kirsti Noem, governadora conservadora da Dakota do Sul, ao tomar conhecimento dos tênis, convoca um boicote à marca Nike, alegando que “666 [inscription] and a drop of human blood in the sole is a reason why we Christians must be prayed up ready to battle in the spirit with the Voice of the Holy Spirit.”3
Partindo dessa situação, a confusão se instaurou, os consumidores foram levados a crer que tal tênis havia sido de fato produzido pela Nike, até porque ainda constava seu logotipo ao produto, em adição ao twit da governadora, a reputação e imagem da Nike sofre grande ataque nos Estados Unidos.
De tal modo que a marca judicializa a causa contra o rapper Lil Nas X e a MSCHF, alegando diluição marcária e confusão.
A corte norte-americana deu razão ao pleito da Nike, de tal forma que o leilão do exemplar nº 666 foi suspenso, apesar de todos os demais modelos já terem sido vendidos e esgotado o estoque.
A Lei não deve engessar o processo criativo do mundo da moda, deve-se fomentar o processo livre de circulação de ideias para que a própria ignição do capitalismo opere. Contudo, deve-se proteger a criação, a marca, o nome, a imagem e a reputação construída no mercado. Há quem ache os calçados satânicos abjetos, há quem os compre, tal forma que esgotaram prontamente na internet. Mas de fato escasso o arcabouço de defesa em prol da MSCHF, a utilização de um produto preexistente, um modelo de calçados desenhado por uma marca, contendo seu logotipo estampado, pode de fato levar à confusão dos consumidores, e para além da mera proteção do capital empreendido para a produção de um sinal distintivo visualmente perceptível, deve-se proteger o mercado, e acima de tudo os consumidores, para que não sejam aviltados em uma relação que se denote sua vulnerabilidade, seja no caso do Louboutin, seja no caso dos tênis do diabo.
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Bernardo Rocha da Motta Pereira
Referências
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1. FIORETTI, Julia. Louboutin wins EU court battle over distinctive red soles. Reuters. 2018. Disponível em: https://reut.rs/3lzgj6y. Acesso em: 15 set. 2021.
2. Luke 10:18: “And he said unto them, I beheld Satan fallen as lightning from heaven”.
3. MSCHF’s Nike-Branded Sneakers Injected with Human Blood Raise Some Interesting Legal Questions. The Fashion Law. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3CfxWzh. Acesso em: 15 set. 2021.