O envelhecimento no mundo do trabalho: entre decretos e interdições sociais

O envelhecimento no mundo do trabalho: entre decretos e interdições sociais

Idoso trabalhando

Recorrentemente associado ao declínio, à senescência, à decrepitude e degeneração, o envelhecimento é um fenômeno natural, embora socialmente desnaturalizado. O processo se constitui em diferentes camadas (cronológica, biológica, burocrática, psicológica, social), acolhendo, por derradeiro, abordagens e perspectivas distintas. A sua nomeação, marcadamente excludente, remete a juízos depreciativos (não embasados cientificamente). (LOTH, 2004; SOARES, 2020; WINANDY, 2021; LEVY, 2022)

“Na área de Gerontologia, a análise da idade sob as perspectivas biológica social e psicológica se entrelaça em uma tentativa de compreensão deste complexo conceito.” (WINANDY, 2021, p.19)

A sociedade do trabalho determina um “não lugar” para o sujeito que envelhece, à revelia de sua vontade, competências, entrega, autovisão e potência criativa, na verdade, de sua própria dignidade existencial. É nesse passo que a pessoa que envelhece deixa de ser profissionalmente vista a partir de suas singularidades, competências, talentos e história de vida, transformando-se em uma categoria social caricata, de perfil ‘reduzido’, desprestigiado e generalizado.

Envelhecer torna-se, então, para trabalhadores e trabalhadoras, com seus corpos e subjetividades manipulados e pressionados, uma experiência temida, traumática e indesejada, a despeito de sua inevitabilidade.  Os eufemismos “terceira idade, melhor idade” generalizam e romantizam o envelhecimento por suas abordagens ficcionistas, baseadas em indícios culturais.

Este artigo objetiva discutir a experiência do envelhecimento de trabalhadores e trabalhadoras, delimitação justificada pela pertinência temática ante os casos de discriminação motivados por idade e pelo reclamo social por alternativas de promoção da dignidade no meio ambiente de trabalho. Para além disso, o pilar etário é também um recorte relevante da diversidade, especialmente quando se considera o envelhecimento crescente da população.

Nascimento (2023) adverte que a faixa etária alcançada pela discriminação baseada na idade tem se alargado significativamente, atingindo de modo excludente pessoas com menos de 60 anos, quadro que opera como um decreto de interdição social, a despeito da tutela constitucional.

A sociedade do trabalho impõe às pessoas um prazo de validade (valor produtivo) que é cada vez mais curto, prática notadamente desumanizante, visto que as rebaixa à condição de ‘trabalhadores–sujeitos de desempenho’ sem autonomia existencial, dando ensejo a uma discriminação etária estruturalizada, marcada pelo desinteresse social, em alguns casos até, pelo menosprezo e hostilidade. Trata-se, portanto, um elemento importante de cenário de precarização das relações de trabalho.

O estatuto da pessoa idosa regulamenta os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)

O etarismo se manifesta no ambiente de trabalho de diferentes maneiras e em contextos diversos, a exemplo daquele de admissão, de delegação de tarefas (baseada em uma suposição de desempenho cognitivo), da planificação de cargos e salários (desigualdade remuneratória), da comunicação corporativa e do cotidiano das relações entre os pares. Mormente, está presente até mesmo antes da experiência social efetiva.

O desvalor atribuído à pessoa idosa ou àquela cuja idade se avizinha aos 60 anos, tem na pedagogia organizacional e suas demandas por desempenhos superiores e lucratividade crescente, um importante fundamento.

O fenômeno se apresenta e revela ao mesmo tempo como preconceito e discriminação, termos que possuem definições distintas. O preconceito é atitudinal enquanto a discriminação é comportamental (explícita, observável, sensível). A noção de discriminação é atada àquela de preconceito. Significa afirmar que não há discriminação sem preconceito, mas pode existir um preconceito não vocalizado ou externalizado de outra forma. Por força da existência dessa relação de continência conceitual, utiliza-se recorrentemente a expressão “preconceito baseado na idade”. Karnal e Fernandes (2023) explicam que,

O preconceito é formado antes de uma experiência real, a partir de uma generalização. Como a base de quase todo pensamento racional é a experiência real e concreta das evidências, aqui esbarramos, de saída, no caráter não científico do preconceito. O preconceito é algo que contraria a lógica elementar de toda ciência. O preconceito nasce sem que necessite de dados objetivos. O preconceito, antes de tudo, vem de alguém com uma limitação intelectual conjectural — porque não conhece —, e que deduz sobre o vazio. (KARNAL e FERNANDES, 2023, p. 9-10)

O preconceito é uma generalização e, como toda generalização, costuma ser atraente porque facilita os enquadramentos e classificações sociais. Acelera a compreensão (ainda que incompleta ou equivocada). Reduz o esforço cognitivo de leitura do mundo e de interpretação posterior dos fatos. O preconceito dispensa a verdade que anima a realidade social e, por decorrência, a lógica subjacente aos fatos, atribuindo às singularidades um caráter aleatório (de exceção). O preconceito se origina e se reproduz a partir de um recorte ultrareduzido da realidade.

A pessoa preconceituosa responsabiliza terceiros pela sua condição, seja ela qual for; iniciativa que, além de justificar, nutre o estado de negação do sujeito, gerando um resultado quase catártico.

Os autores completam, afirmando que:

Apesar de, em si, contrariar o método científico, generalizar facilita as coisas para cabeças lineares, que gostam muito de regras universais, sempre aplicáveis. As exceções, os matizes e o aleatório (hoje se fala randômico ou até quântico) atrapalham o pensamento plano. A generalização seduz quem se sente pouco à vontade com o real e busca um nicho onde descansar sua angústia. (KARNAL e FERNANDES, 2023, p.10)

Desprovido de razão científica, o preconceito repercute na produção de sentidos e significados pelo sujeito, amoldando representações sociais que desprestigiam, marginalizam e excluem o outro, compondo grupos sociais estigmatizados.

O etarismo produz, por sua dinâmica pervasiva, além do impacto existencial, a desnaturalização do envelhecimento, afetando negativamente a autoestima do(a) trabalhador(a). A ressonância do preconceito é marcadamente implosiva (psicologizante), não se limitando à sua relação com o mundo. No plano dos fatos e naquele relacional, essas visões são determinantes no modo como as pessoas mais velhas são percebidas e tratadas nos diferentes substratos sociais, dando oportunidade ao surgimento de narrativas diversas, quase sempre negativas acerca do envelhecimento.

Como qualquer espécie de discriminação, o etarismo no mundo do trabalho é adoecedor. Organizações socialmente engajadas, as quais denomino de OSE (modelo desenvolvido em nossas pesquisas na UFRPE) adotam medidas internas (afirmativas) voltadas para a promoção da igualdade no meio ambiente de trabalho, a exemplo:

  • do onboarding inclusivo;
  • da implantação de Programas de integridade;
  • do desenvolvimento de políticas diretoras;
  • de ações de sensibilização, capacitação, integração e convívio;
  • de mediação de conflitos;
  • de inclusão digital, bem como;
  • de controle e monitoramento de ocorrências enquadradas como violação de direitos humanos (instalação de canais de denúncia, de ouvidoria, auditoria interna, due diligence).

O deslocamento mental para o lugar do outro nos apresenta, se não a algo próximo ao “sentir”, uma nova razão. Este é um movimento importante e principal argumento para a realização de dinâmicas de sensibilização.

As citadas ações afirmativas não dispensam a emergência de políticas públicas focadas no problema e o fortalecimento daquelas já existentes, com o propósito de viabilizar e dar efetividade às promessas constitucionais, qual seja, de concretização dos direitos sociais contemplados no art. 6º., caput de nossa Constituição.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

As ações afirmativas compreendem medidas que visam a inclusão social de grupos posicionados à margem dos privilégios que segregam a sociedade brasileira (pessoas forçosamente vulnerabilizadas). Objetiva, igualmente, oportunizar melhores condições de desenvolvimento em nível geral. No âmbito corporativo, seus propósitos frequentemente orbitam em torno dos seguintes eixos: qualidade do meio ambiente de trabalho (em seus diferentes aspectos) e a demografia organizacional. As ações não devem ser motivadas pelo interesse de mitigar o risco judicial, que é uma consequência natural, mas de naturalizar e promover o envelhecimento digno.

 

Referências

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016.

______. Estatuto do idoso: lei federal nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Disponível em: L10741 (planalto.gov.br).

LEVY, Becca. A coragem de envelhecer: ciência de viver mais e melhor. Teutônia, RS: Principium, 2022.

LOTH, Guilherme Blauth; SILVEIRA, Nereida. Etarismo nas organizações: um estudo dos estereótipos em trabalhadores envelhecentes. Revista de Ciências da Administração[S. l.], p. 65–82, 2014. DOI: 10.5007/2175-8077.2014v16n39p65. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/adm/article/view/2175-8077.2014v16n39p65. Acesso em: 24 jan. 2024.

KARNAL, Leandro e FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Preconceito: uma história (Portuguese Edition). São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

NASCIMENTO, Juliana. 17. Esg – Combatendo a Discriminação na Velhice: Etarismo em Ambientes Corporativos (Onu, Agenda 2030) In: NASCIMENTO, Juliana. Esg: O Cisne Verde e o Capitalismo de Stakeholder – Ed. 2023. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/esg-o-cisne-verde-e-o-capitalismo-de-stakeholder-ed-2023/2030258609. Acesso em: 26 de Janeiro de 2024.

SILVA, Letícia Alcântara da; SANTOS, Ester Lima dos; SOUZA, Helena Kellen Barbosa de; PODEMELLE, Rubenyta Martins; SOARES, Renê Ribeiro; MENDONÇA, Sarah de Souza. envelhecimento e velhice LGBTQIA+: repercussões sobre a saúde física e mental de pessoas de meia-idade e idosas. Revista Brasileira de Sexualidade Humana[S. l.], v. 33, p. 1013, 2022. DOI: 10.35919/rbsh.v33.1013. Disponível em: https://www.rbsh.org.br/revista_sbrash/article/view/1013. Acesso em: 24 jan. 2024.

SOARES, Flávia Maria de Paula.  Envelhescência:  o trabalho psíquico na velhice. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.

WINANDY, Fran. Etarismo: um novo nome para um velho preconceito. 1.ed.  Divinópolis, MG: Adelante, 2021.

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