A filosofia, e a literatura têm como características dissertar, descrever e desvelar o estar do homem no mundo, em contos, versos, e romances ou “tratados” filosóficos, por exemplo, este desvelamento em si é como um texto a ser compreendido e, por que não dizer, decifrado. Neste sentido, “quem quer compreender um texto deve estar pronto a deixar que ele lhe diga algo” (Gadamer, 1999, p.91). A filosofia, a literatura e o direito, portanto, sempre têm algo a dizer sobre o homem, o mundo e as coisas que nele estão.
A tarefa fundamental de toda a filosofia é dirigir uma interrogação ao mundo. Quando pensamos no mundo a ser interrogado, temos de estabelecer os seus contornos no âmbito da produção histórica do homem, da ciência, da técnica, da política, da economia, do trabalho, da linguagem, da educação e do cotidiano. Através das ações realizadas, colocamos em prática a nossa capacidade de interrogar e, é justamente a filosofia que possibilita ao homem refletir e questionar o mundo e as coisas que o cercam. O mundo não é um limite, é um horizonte. O objeto de escolha do interrogante; resulta do cruzamento de sua vontade com o universo de seu envolvimento prático e do seu compromisso político, cultural e ideológico. A interrogação deve dirigir-se aos agentes do fazer, aos instrumentos da produção, aos seus pressupostos, objetivos e resultados. Ou seja, trata-se de perguntar o que é, como é e por que é, pois a atitude filosófica nada mais é do que um contínuo exercício de questionamento.
A literatura, ao descrever o estar do homem no mundo e, as coisas que nele estão, realiza uma verdadeira reflexão filosófica pois, pode descrever o quê, o por quê, o para quê e, como os fenômenos descritos se apresentam para uma consciência. Cabe aos intérpretes manter o olhar firme para o seu objeto, superando todas as confusões que provenham do seu próprio íntimo. Quem se propõe a interpretar um texto, está sempre concretizando um projeto. Com base no sentido mais imediato que o texto lhe exibe; o sujeito esboça preliminarmente um significado do todo. Quem procura compreender fica exposto aos erros e às limitações de tal ato, haja vista que, etimologicamente, interpretar significa ajuizar a intenção, explanar ou aclarar o sentido de cada palavra, texto ou gesto.
O conceito de um texto é ele mesmo hermenêutico, uma vez que, o ser-no-mundo se remete a ele quando não segue interpretações dadas, ao mesmo tempo que nunca permanece parado junto à mera letra do texto quando o compreende. A palavra em si possui uma função puramente comunicativa, e é significada pelos sujeitos a partir de seus laços culturais, podendo ganhar novas conotações com o passar do tempo. Quando está dentro de um livro literário, no entanto, a palavra não apenas comunica mas diz o (in)dizível, uma vez que ganha voz aquilo que pertence à essência da comunicação linguística.
Por intermédio da literatura, o ser-no-mundo não entra em contato com “mundos” vividos, mas sentidos. Em um livro, segundo Borges (1978), nada é casual: o número de letras, a quantidade de sílabas que formam cada palavra, cada expressão, etc. Mesmo que não seja casual, o número das letras em si não possui importância, o que importa é que cada conjunto de letras tem por objetivo dizer o (in)dizível e, a partir dele, uma gama de significados e conceitos se apresentam e são descritos de várias formas por diferentes autores.
Compreender o modo como a realidade é descrita por intermédio da literatura e do direito é uma tarefa árdua, dada a relação recíproca entre teoria e prática. Segundo Souto (2020), a relação entre literatura e direito pode ser compreendida como um movimento que caminha na estrada da interdisciplinaridade, uma vez que, “[…] a rigidez da técnica jurídica proveniente do discurso literário permite-se ao jurista (advogado, acadêmico ou juízes) nova visão e uma análise hermenêutica mais compatível com a realidade.” (Souto, 2020, p.158). Por possuir esta característica interdisciplinar, a linguagem é um instrumento “peculiar” para os operadores do direito e, a literatura fornece subsídios para sua sistematização, interpretação e aplicação.
Essa interdisciplinaridade, consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém. O texto é um grande exemplo disso: nem ao autor ele pertence, visto que, após escrito, o criador não possui mais domínio sobre a criatura, e não há argumento de autoridade/fonte autorizada na disputa pela melhor interpretação. “Ao observar a conduta humana como um texto, a hermenêutica faz uma mediação de sentidos, decifrando a linguagem conotativa — ou aquilo que está por detrás do explícito. Desvela-se, assim, o Ser, compreensão sempre buscada pelo ser humano”. (MORAIS e SOUTO 2018, n.p).
A literatura jurídica visa convencer, persuadir, comover e instruir ouvintes e leitores, uma vez que tal discurso, constituído por “signos” e argumentos específicos, é destinado a um grupo seleto de sujeitos. A literatura coloca em desordem as convenções, suspende as certezas, e fragiliza o saber positivo sobre os quais o direito se assenta, uma vez que, o uso da imaginação, bem mais que um recurso estético, é um elemento essencial para se compreender a realidade.
A literatura tem o condão de propiciar um diálogo constante entre o narrador e o leitor, e, no dizer de Gadamer, “o verdadeiro carisma do diálogo está presente na espontaneidade viva do perguntar e do responder, do dizer e do deixar-se dizer” (Gadamer, 2000, p.131). Ou seja, a literatura proporciona um encontro do mundo narrado com o mundo vivido, onde o leitor é um sujeito que desvela o fato narrado, haja vista que o sentido da história é por ele (re)investigado e (re)interpretado. E, “uma obra gera efeitos, tem consequências que o autor não vê e não pode ver, mas que determinam aquela situação hermenêutica, dentro da qual o intérprete interpreta a obra.” (REALE e ANTISERI,1991, p. 633).
Ademais, uma obra literária, após ser produzida, não pertence a ninguém, é de domínio temporário daquele que lê e se coloca dentro da história esboçando, uma interpretação do texto. Segundo Gadamer (1999, p.1), “[…] quem procura compreender fica exposto aos erros derivados de preposições que não encontram confirmação no objeto.”. O texto é analisado a partir de pré-compreensões; ao se colocar dentro da história, o intérprete está buscando um entendimento a respeito do que lhe é narrado. Para Grondin, “entender teoricamente o contexto, significa, pois, realmente, estar em condições de enfrentá-lo, levá-lo a cabo, poder começar algo com ele” (Grondin, 1999, p.160). Assim, pode-se dizer que este movimento de entendimento propicia, além do diálogo entre o intérprete e o escritor, uma compreensão do enredo e da própria existência, descrita em versos, ou prosas. “Toda a nossa vida é tecida por tais habilidades, assim entendemos como tratar com pessoas, como cuidar das coisas, como passar o tempo, etc. sem dispor de um saber especial […].” (Grondin, 1999, p.160).
Estar no mundo é, portanto, interpretar o indizível. Este movimento do intérprete em direção ao texto se traduz em afastamento e aproximação, pois, quanto mais nos afastamos cronologicamente do texto, mais deveremos nos aproximar dele com uma compreensão mais apurada, posto que aumentam os dados de consciência que nos põem em condição de descartar as interpretações errôneas ou menos adequadas, e substituí-las por interpretações novas e mais justas (Gadamer, 1999).
O uso da obra literária e filosófica no cotidiano do operador do direito o possibilita tecer novas sensibilidade, — em especial a criatividade, a crítica e a inovação — uma vez que, as obras ficcionais, seja em forma de verso, ou prosa, são carregadas de “historicidades” que representam um tempo, um lugar e trazem à tona o “fazer” deliberativo do escritor. A literatura propicia um olhar sensível sobre o cotidiano e sobre a condição de vulnerabilidade de outrem, possibilitando ao operador do direito analisar e julgar situações fácticas para além das expressões normativas do texto legal representado em manuais de direito e em códigos. Logo, o contato com a literatura pode gerar um renovado olhar sobre as certezas e convencionalismos próprios do fenômeno jurídico. Ao mesmo tempo, a filosofia mostra-se um campo epistemológico de cunho reflexivo e crítico que pode oferecer contribuições significativas à seara jurídica.
A interdisciplinaridade entre literatura, filosofia e direito, portanto, propicia um diálogo entre a teoria e a prática, cujas relações tecidas têm o condão de colocar face a face a rigidez da técnica jurídica e uma análise hermenêutica da realidade, possibilitando um encontro entre o mundo narrado com o mundo vivido.
Referências
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BORGES, Jorge Luis. O livro. 1978 (livro eletrônico).
GADAMER, H-G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petropólis: Vozes, 1999.
GADAMER, Hans-Georg. La educación es educarse. Trad. Francesc PereñaBlasi. Barcelona: Paidós, 2000.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo: ED. UNISINOS, 1999.
MORAIS, Clarice Paiva; SOUTO, Luana Mathias. DECISÕES JUDICIAIS CONSTITUCIONAIS: HERMENÊUTICA, CULTURA E RETRATOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA. IX ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI – CULTURA JURÍDICA E EDUCAÇÃO CONSTITUCIONAL. Quito, 2018.
REALE, Giovani e Antisseri Dario. História da Filosofia Vol. III. Trad: Álvaro Cunha. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
SOUTO, Luana Mathias. NARRATIVAS DE VIDA E DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE OS DIREITOS DAS MULHERES E ESTADO DE EXCEÇÃO. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 6, n. 1, janeiro-junho 2020.