O eugenismo, o holocausto e o Código de Nuremberg como antecedentes do surgimento da bioética e do biodireito

O eugenismo, o holocausto e o Código de Nuremberg como antecedentes do surgimento da bioética e do biodireito

Holocausto

Por volta do período de 1843-1865 o monge inglês Gregor Mendel começou a fazer estudos que explicavam a transferência de genes de plantas e animais para seus descendentes. Com suas famosas ervilhas, Mendel averiguou que características genéticas consideradas indesejáveis poderiam ser transmitidas a partir da hibridação dos diferentes tipos de ervilhas. Por exemplo, neste período as ervilhas rugosas eram vistas como geneticamente ruins, enquanto as ervilhas lisas eram consideradas geneticamente superiores. O cruzamento dos genes poderia, em tese, prejudicar a descendência das ervilhas lisas, uma vez que as mesmas com o tempo dariam origem a ervilhas rugosas.

Em 1859 entrou em cena a obra “A Origem das Espécies” de Charles Darwin. Com esta se desenvolveu a teoria da “seleção natural” e a concepção da sobrevivência do “mais apto” como essencial para uma suposta evolução e perpetuação das espécies. O biólogo inglês Francis Galton, o qual era primo de Darwin, começou a politizar a teoria evolucionista.

Galton começou a supervalorizar a hereditariedade humana. Para ele as aptidões de cada indivíduo estavam muito mais ligadas à sua carga genética do que qualquer outra circunstância (seja educacional, familiar ou cultural). Assim, o mesmo começou a raciocinar que seria possível controlar e acelerar a seleção natural estimulando que indivíduos geneticamente superiores se reproduzissem em maior número. Em 1883, o mesmo lançou uma obra (“Inquiries into human faculty and its development”) chamando esse programa de eugenia, “eu” + “genia” – que no grego significa “boa geração ou bom nascimento” (TORRES, 2008).

Essas ideias de Galton se tornaram populares na classe científica (notadamente biológica e médica) da época. Inclusive na Inglaterra de Galton havia uma preocupação com uma possível degeneração biológica da população, uma vez que a taxa de natalidade era maior nas classes mais pobres do que na elite (GUERRA, 2006). Essa preocupação se espalhou por toda Europa. O programa proposto por Galton de proliferação de seres geneticamente (e supostamente) superiores, por meio de casamentos entre os mais aptos, ficou conhecida como “eugenia positiva”.

As concepções eugênicas de Galton chegaram aos EUA. No século XIX os EUA começaram a receber muitos imigrantes. Isto fez com que defensores das ideias eugênicas associassem uma aludida degeneração da saúde, higiene e intelectualidade da população com a presença dos imigrantes. Logo, Charles Davenport (pioneiro do movimento eugenista nos EUA) começou a teorizar aquilo que ficou conhecido como “eugenia negativa” – o impedimento da reprodução de seres considerados geneticamente inferiores ou indesejáveis.

Em 1909, Davenport criou a “Eugenics Record Office” que teria a enorme tarefa de registrar a carga genética dos norte-americanos. Em 1912 foi realizado o “I Congresso Internacional de Eugenia” promovido por cientistas europeus e americanos, do qual posteriormente surgiu a “Federação Internacional de Organizações Eugenistas” (GUERRA, 2006). Deste modo, foi formada uma agenda internacional para a erradicação dos que fossem considerados geneticamente inferiores.

Não demorou muito e o mundo começou a sentir os efeitos práticos destas concepções supostamente “científicas”. Nos EUA surgiram leis de “esterilização compulsória”. A primeira foi no Estado de Indiana em 1907 sendo seguida por legislação semelhante em 25 outros Estados, sendo que milhares de pessoas foram submetidas contra sua vontade a esterilização. O principal alvo da campanha eram deficientes físicos e mentais, negros, indígenas e imigrantes. No mesmo sentido, foram publicadas leis antimiscigenação proibindo casamentos inter-raciais em cerca de 30 Estados por todo os EUA. Leis semelhantes a estas também se fizeram presentes no Canadá e em diversos países da Europa (BEIGELMAN, 1997).

As ideias racistas eugênicas chegaram à Alemanha e influenciaram a forma de pensar da comunidade cientifica alemã, notadamente a classe médica. Estas teorias vieram ao encontro do fervor nacionalista do partido nazista. Digno de nota que no final do século XIX e início do século XX ocorreu uma explosão, por toda a Europa, de movimentos ultranacionalistas que valorizavam o aspecto racial, no que ficou conhecido como a era do “nacionalismo racial”. Isso pode ser observado no “Programa do Partido Nazista” de 24 de fevereiro de 1920, constituído de 25 pontos. Seguem alguns pontos do referido programa:

1) Exigimos a reunião de todos os alemães numa grande Alemanha, fundamentados no direito dos povos a dispor de si mesmos […] 3) Exigimos terras para alimentar o nosso povo e nelas instalar a nossa população excedente. 4) somente os membros do povo podem ser cidadãos do Estado. Só pode ser membro do povo aquele que possui sangue alemão, sem consideração de credo. Nenhum judeu, portanto pode ser membro do povo. 5) Quem não é cidadão só pode viver na Alemanha como hóspede e deve se submeter à legislação relativa a estrangeiros […] 8) Toda imigração suplementar de não-alemães deve ser impedida. Exigimos que todos os não-alemães entrados na Alemanha desde 2 de agosto de 1914 sejam obrigados a deixar o Reich imediatamente […] 13)  Exigimos a nacionalização de todas as empresas estabelecidas como sociedades (BURON & GAUCHON, p.87-91, 1980).

Os nazistas viam a guerra contra os judeus (e outros povos considerados inferiores) como uma questão de sobrevivência racial. A retórica eugenista da sobrevivência dos mais aptos para a preservação e evolução da espécie humana é uma constante em seus discursos. Neste sentido, os nazistas se veem como que escolhidos pela lei natural para defender a Alemanha e a Europa da dominação e da contaminação da raça judaica. Em outras palavras, o nazismo buscou a implementação do “darwinismo social”. Isto fica evidente em várias de suas propagandas e discursos, os quais associavam os judeus (bem como outros povos, como os ciganos e os eslavos) a insetos, vermes e ratos que traziam perigo a pureza racial e genética do povo ariano, bem como por extensão a própria sobrevivência do continente europeu.

Neste aspecto, torna-se revelador o discurso de Joseph Goebbels no auge da II Guerra Mundial, em 27 de julho de 1941:

Se o judeu perder essa batalha, estará definitivamente perdido […] Tempo virá em que toda a Europa e todo o mundo civilizado hão de reconhecer o sentido e a razão deste combate titânico; precisamente nesse momento, os povos do nosso continente perceberão o perigo que nos ameaçava […] nunca os povos puderam estar tão tranquilos quanto ao seu futuro como agora que o veem novamente confinado as armas alemãs. À frente da Europa, lutamos, ao lado de nossos aliados, por mais do que a nossa existência nacional. O que está em jogo é a existência ou a destruição do nosso continente. E sentimo-nos orgulhosos de que, neste combate, os alemães, mais uma vez, estejam na primeira fileira (BURON & GAUCHON, p.111, 1980).

O mais irônico é que enquanto os nazistas alegavam assegurar a defesa da existência do continente europeu na II Guerra Mundial, nos seus campos de extermínio e concentração vários povos estavam sendo eliminados. Embora mantivessem sua política de extermínio em segredo, acreditavam que futuramente, com a vitória na guerra, vários povos iriam entender o “motivo” da eliminação física do povo judeu e de outros durante a guerra.

Somado ao afirmado acima, o terror vigia nos campos nazistas, com os mais variados “experimentos médicos”, nos quais os prisioneiros eram tratados como meras cobaias, sendo negada sua condição humana. Entre estes “experimentos” ocorreram horrores como o congelamento (para analisar o processo de resistência ao frio e reaquecimento do corpo humano), no qual a vítima era submetida a uma espécie de banheira com água congelante, sendo introduzida uma sonda no reto para medir a temperatura corporal.

Outros foram infectados com o vírus da malária, bactérias para transmitir tétano e tifo, queimados com gás mostarda e bombas incendiárias, submetidos a inanição, desidratação e esterilização compulsória. Também foram realizados testes de “pressão” e perda de oxigênio para simular altitudes de até 20.000 metros (MUSEU DO HOLOCAUSTO DOS EUA, 2022).

Em decorrência de tais atrocidades, houve o “Julgamento de Nuremberg dos Médicos”, no qual 23 pessoas (sendo 20 propriamente médicos) foram levados a julgamento. No entanto, um dos maiores sanguinários não esteve presente no referido julgamento. O médico Josef Mengele conseguiu fugir da Alemanha após a II Guerra Mundial para a Argentina, morrendo em Bertioga, SP, Brasil. O mesmo ficou famoso por seus experimentos no campo de Auschwitz, envolvendo muitas vezes gêmeos, variando deste a aplicação de substâncias químicas em olhos de prisioneiros, bem como amputação de membros e vivissecção de prisioneiros (MUSEU DO HOLOCAUSTO DOS EUA, 2022).

Essas monstruosidades provocaram uma forte reação da comunidade científica após a II Guerra Mundial, a qual verificou a necessidade de traçar princípios éticos bem contundentes. Estes princípios levaram os cientistas a uma nova consciência ética, a qual com o passar do tempo deu origem a Bioética e ao Biodireito.

Após o Holocausto, o Código de Nuremberg (1947) trouxe à tona diversos princípios éticos científicos que prepararam o terreno para o retorno da Bioética. O horror dos “experimentos médicos” nazistas fez com que a comunidade científica internacional tivesse de dar uma enérgica resposta. Cada vez mais, ficava evidente que “tecnologia de ponta” estava sendo utilizada para matanças e destruição. Inclusive, as bombas atômicas lançadas pelo exército americano sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki também deixaram a comunidade internacional assustada.

O Código de Nuremberg na realidade se trata de uma Declaração de dez princípios, os quais seguem abaixo:

1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão lúcida. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais o experimento será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente. 2.O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser casuísticos ou desnecessários na sua natureza. 3. O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a realização do experimento. 4. O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento físico ou mental desnecessários e danos. 5. Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento. 6. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o experimento se propõe a resolver. 7. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota. 8. O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. O mais alto grau de habilidade e cuidado deve ser requerido de aqueles que conduzem o experimento, através de todos os estágios deste. 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento, se ele chegou a um estado físico ou mental no qual a continuação da pesquisa lhe parecer impossível. 10. O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar, no exercício da boa fé, habilidade superior e cuidadoso julgamento, que a continuação do experimento provavelmente resulte em dano, invalidez ou morte para o participante (GHC, 2022).

Tais princípios do Código de Nuremberg constituem a base do Consentimento Informado e da Autonomia (princípios basilares da Bioética e do Biodireito).

Nos anos de 1970-1971, o bioeticista americano Van Rensselaer Potter publicou respectivamente o artigo “Bioética: ciência da sobrevivência” e o livro “Bioética: uma ponte para o futuro”, visualizando neste momento a Bioética como uma ponte entre as ciências biológicas e a ética. Posteriormente, Potter alargou o estudo da Bioética para outras áreas do conhecimento, buscando uma “Bioética Global” (PESSINI, 2013). Desde então, o termo “Bioética” se popularizou, tornando-se matéria presente em muitas grades dos cursos de áreas biológicas e da saúde.

No ano 2000, ocorreu um Congresso Mundial de Bioética na cidade de Gijón (Espanha), da qual saiu a “Declaração de Bioética de Gijón”, elaborada por pesquisadores de vários países da Europa e um de Israel. Por fim, em 2005, diversos Estados-Membros da ONU adotaram a “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”, solidificando os princípios da referida ciência.

Desta feita, é possível observar que a Bioética e o Biodireito são ciências que cada vez mais estão ganhando espaço na área acadêmica. No entanto, nem todos compreendem bem as referidas ciências. Alguns profissionais da área da saúde as veem com desconfiança, preocupados com a perda de “poder” sobre seus pacientes e suas pesquisas. Outros encaram seus princípios meramente como vetores de orientação, mas não os levam a sério na prática.

Todavia, cada vez mais, as instituições de ensino e de saúde levam seus princípios em consideração, principalmente, por meio da criação de seus Comitês de Ética, geralmente, ocupados por profissionais que têm conhecimento na área da Bioética e do Biodireito. Da mesma forma, muitos profissionais da área da saúde se sentem entusiasmados por poderem implementar o respeito a autonomia e consentimento informado de seus pacientes, resultando numa relação menos tensa e mais agradável com os mesmos.

Digno de nota que os Estados-Membros adeptos da referida declaração se comprometeram a colocar em prática por meio de suas legislações e instituições de saúde e pesquisa os referidos princípios. Assim sendo, os mesmos não são meras sugestões, mas tem efeito imperativo.

 

Referências

____________________

BEIGELMAN, Bernardo. Genética, Ética e Estado, Revista Brasileira de Genética, disponível em: https://bit.ly/3jRAeks

BURON, Thierry & GAUCHON, Pascal. Os Fascismos, Ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro, RJ, 1980.

CÓDIGO DE NUREMBERG DE 1947, ghc on line, disponível em: https://bit.ly/40UiNAi

FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: Dos Precedentes à Confirmação de Seus Princípios, Ed. Mandamentos, Belo Horizonte, MG 2002.

GUERRA, Andréa. Do Holocausto Nazista à nova eugenia do século XXI, disponível em: https://bit.ly/40PqwQd

HUHLE, Rainer. De Nuremberg a la Haya: Los crímenes de derechos humanos ante la justicia – problemas, avances y perspectivas a los 60 años del Tribunal Militar  Internacional de Nuremberg. Revista Analises Políticas, Bogotá, Colômbia, vol. 18, nº 55, disponível em: https://bit.ly/40Pu70K

LUPPI, Sheila Cristina Alves de Lima. A Eugenia e o processo de aperfeiçoamento do povo brasileiro 1900-1933, publicado no XXV Simpósio Nacional de História, realizado em Fortaleza/CE e disponível em: https://bit.ly/2X1evp4

MUSEU DO HOLOCAUSTO DOS EUA, disponível em: https://bit.ly/3IhKE6l

PESSINI, Leo. As origens da Bioética: do credo Bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista de Bioética, 2013, disponível em: https://bit.ly/3S2WcOg

TORRES, Lilian de Lucca, Reflexões sobre raça e eugenia no Brasil a partir do documentário ‘Homo sapiens 1900’ de Peter Cohen’, disponível em: https://bit.ly/3K9zx0R

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio