Uma situação que tem sido muito debatida atualmente é a “judicialização da saúde”. Esse termo refere-se ao crescente número de ações judiciais em um contexto no qual a atuação do Poder Judiciário emerge como um elemento crucial na busca pelo acesso a tratamentos médicos, medicamentos e demais tratamentos de saúde que não estão disponíveis nos sistemas de saúde pública ou privada.
Embora essas ações possam representar uma ferramenta importante para garantir o acesso a tratamentos essenciais, elas também geram uma série de desafios. É um fenômeno complexo e multifacetado que reflete as deficiências e desigualdades existentes nos sistemas de saúde contemporâneos, acarretando não só em discussões de âmbito político e judicial no que tange ao papel dos Poderes conforme previsto no artigo 2º, da Constituição Federal,1 mas também acerca da busca pelo equilíbrio da justiça social e da equidade no acesso com sustentabilidade econômica. Nesse sentido explica MARQUES (2008):
O exercício do direito à saúde, positivado em nosso ordenamento jurídico com a Constituição Federal de 1988, vem ganhando contornos nunca vistos, compelindo magistrados, promotores de justiça, procuradores públicos, advogados, entre outros operadores do direito, a lidarem com temas oriundos do Direito Sanitário e da política pública de saúde, nos três níveis de governo. E, também, compelindo gestores públicos de saúde a lidarem com a garantia efetiva deste direito social, em cada caso individual apresentado, através de uma determinação oriunda do Poder Judiciário que, muitas vezes, contrasta com a política estabelecida em matéria de assistência à saúde e com a própria lógica de funcionamento do sistema político;
Conforme estatística apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça,2 já em 2018, observava-se um aumento de cerca de 85% do número de demandas relativas ao direito à saúde, desde então, a procura pela via judicial para a obtenção do direito à saúde tem sido crescente por inúmeros motivos, destacando-se a lentidão, escassez de recursos, e as longas listas de espera que comprometem a qualidade de atendimento, evidenciando a insuficiência e a deficiência da prestação do serviço, seja ele público ou privado.
Já no ano de 2022, o Brasil registrou aproximadamente 460 mil novos processos judiciais relacionados à saúde, dos quais 164 mil diziam respeito à saúde suplementar, de acordo com os dados do Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).3
O fenômeno da judicialização da saúde surge como um farol na escuridão, imagine uma situação angustiante na qual um individuo que possui uma doença grave e rara, recebe a informação de que deverá aguardar para realizar o seu tratamento em uma fila interminável, na qual ele é apenas mais um número, ficando a mercê da sorte, correndo o risco de ter um agravamento de sua condição, antes mesmo de receber o atendimento ou até mesmo falecer.
Qual seria a saída?! Aguardar indefinidamente ou buscar justiça por meio do sistema judiciário?!
A situação narrada acima, reflete uma realidade que tem se tornado cada vez mais frequente, evidenciando as lacunas e deficiências nos sistemas de saúde pública e privada, que nem sempre conseguem atender às demandas crescentes da população por serviços médicos essenciais.
Em que pese o Brasil ser referência no que tange as políticas publicas relacionadas a saúde, incluindo assistência farmacêutica e demais assistências medicas através do SUS (Sistema Único de Saúde), ainda existem lacunas que ressaltam uma grande vulnerabilidade no que tange ao fornecimento de cuidas integrais e acesso de toda a população ao Direito à Saúde, principalmente nos casos envolvendo acesso a medicamentos de alto custo, de rota tecnológica e produtiva de natureza biológica, e que se destinam ao enfrentamento de doenças raras e degenerativas.
Corroborando com esse entendimento, um estudo realizado por GOMES et al. (2014), constatou um grande déficit nos atendimentos médicos de média e alta complexidade no Estado de Minas Gerais:
Na classificação dos procedimentos por modalidade, foram agrupadas todas as designações contendo “hospitalar”, totalizando 77%. Predominaram os procedimentos de média complexidade (51,1%) e os de alta complexidade (44,4%). Observou-se que 80,8% dos procedimentos clínicos eram de média complexidade, e 53,6% dos procedimentos cirúrgicos eram de alta complexidade (53,6%). Apesar de não ter sido utilizada nenhuma referência para identificação da complexidade dos demais procedimentos, percebe-se que houve predomínio de solicitações de internação, internação em CTI, procedimentos cirúrgicos e exames com tecnologia avançada, que poderiam ser denominados como de média ou alta complexidade.
O resultado do estudo acima, nas palavras dos próprios juristas “sinalizam gargalos nas linhas de cuidado e dificuldades na garantia da integralidade da atenção à saúde pelo SUS. Ou seja, nos dispositivos legais, o sistema oferta o serviço de forma universal, mas não consegue atender as demandas integralmente. Além disso, essas ações judiciais indicam uma dificuldade do SUS para suprir as diversas necessidades de utilização dos serviços em atendimento ao direito à vida.”
Diante da escassez de recursos, longas filas de espera e falta de acesso a tratamentos específicos, muitos cidadãos recorrem ao Judiciário como último recurso para garantir o acesso a cuidados de saúde adequados.
Mesmo sendo uma questão que envolve políticas públicas, o Poder Judiciário não pode se abster de intervir, dado o princípio da inafastabilidade da jurisdição. No entanto, essa jornada rumo à justiça não é isenta de desafios. A sobrecarga do sistema judicial, a falta de conhecimento técnico dos juízes em questões médicas complexas e a incerteza jurídica são apenas algumas das pedras no caminho.
O direito à saúde é um dos pilares fundamentais dos direitos humanos, reconhecido internacionalmente como parte essencial do direito. No entanto, garantir a sua efetividade muitas vezes envolve complexidades não só práticas, mas também legais.
Apesar dos desafios associados à judicialização da saúde, a atuação do Poder Judiciário também pode ter impactos positivos na efetividade do direito à saúde. Ao garantir o acesso a tratamentos médicos e medicamentos essenciais, o Judiciário pode salvar e melhorar a qualidade de vida de milhares de pessoas. Além disso, a pressão exercida pelas decisões judiciais pode levar os governos e as instituições de saúde a promoverem mudanças estruturais necessárias para garantir o acesso universal aos cuidados de saúde
Para lidar com esse fenômeno complexo e multifacetado, é essencial adotar uma abordagem holística e colaborativa que leve em consideração as diversas dimensões do problema. Isso inclui a implementação de políticas públicas que fortaleçam o sistema de saúde como um todo, garantindo o acesso universal a serviços médicos de qualidade e promovendo a prevenção e a promoção da saúde.
Referências
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Acesso em: 20 fev. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justição. Tema 106. […]. Brasília, DF: Supremo Tribunal, [2019]. Disponível em: link. Acesso em: 20 fev. 2023.
CIARLINI, Alvaro Luis de A S. Direito à saúde – paradigmas procedimentais e substanciais da Constituição. 1ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. E-book. ISBN 9788502197732. 337. Acesso em: 19. jan.2024
GOMES, Fernanda de Freitas Castro; CHERCHIGLIA, Mariângela Leal; MACHADO, Carlos Dalton; SANTOS, Viviane Cristina dos; ACURCIO, Francisco de Assis; ANDRADE, Eli Iola Gurgel. Acesso aos procedimentos de média e alta complexidade no Sistema Único de Saúde: uma questão de judicialização. Cadernos de Saúde Pública. Acesso em: 19 jan. 2024
MAINANTI, Mariana. Saúde suplementar pontua impacto de processos judiciais para equilíbrio do setor. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, [2023]. Disponível em: link. Acesso em: 27 fev. 2024.
MARQUES, S. B.; DALLARI, S. G. A garantia do direito à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública, São Paulo. Acesso em: 27 fev. 2024.
1. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
3. O Conselho Nacional de Justiça lançou o Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde com informações detalhadas sobre as demandas judiciais que tenham por objeto a saúde. Os dados do painel podem ser visualizados no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça, por meio do endereço eletrônico: link.