O impacto das novas tecnologias no mercado de capitais – apontamentos sobre negociações algorítmicas em alta frequência (HFT) – Parte I

O impacto das novas tecnologias no mercado de capitais – apontamentos sobre negociações algorítmicas em alta frequência (HFT) – Parte I

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(O presente artigo é fruto de resultados levantados no grupo de pesquisa Mercado de Capitais e novas tecnologias, coordenado pelo autor Bernardo Rocha, juntamente com o pesquisador Luis Otávio Barbosa, na Universidade Federal de Juiz de Fora)

 

Mercado. Palavra polissêmica, que a tudo cabe, e ainda assim, nada contém. Hora subjetivado, como uma persona de forte temperamento, consciente e senciente, cujas ações impactam significativamente a sociedade. Há momentos em que o mercado está agressivo, agindo como um touro, desviando e perfurando adversidades com seus chifres sinuosos. Outros em que traz uma postura de urso, sobrevivendo aos seus resultados negativos.

O mercado também é o locus das atividades mercantis, incluindo as relações de troca domésticas em escala de consumo, mas também sendo reconhecido axiologicamente como referenciando às grandes praças de pregões públicos das grandes máquinas corporativas capitalistas, as sociedades anônimas. O mercado engloba os agentes que nele atuam, sejam leiloeiros, comerciantes, trapicheiros, banqueiros, etc. Mas também contabiliza o resultado interoperacional dessas relações.

O mercado pode também se referir ao grande moinho ideológico satânico, que a tudo destrói e reduz às pessoas a massas descorporificadas. Bem verdade que, sobrepujando e englobando a todas essas compreensões polissêmicas, o mercado, incorporando à compreensão dos perfis de empresa de Asquini, também é poliédrico, não é despiciendo que a sua regulação o trate dessa forma plural.

Verdade é que o mercado, se sobrepondo inclusive às concepções contratuais de organização da sociedade, é uma escolha e uma forma política de origem das sociedades hodiernas, assim como também é uma escolha política quanto à forma ótima de alocação de recursos escassos na sociedade.

O mercado, que também pode ser compreendido como a abreviação terminológica de “economia de mercado”, reflete as escolhas políticas organizacionais de um Estado, em que opta por submeter a distribuição de recursos, face aos anseios ilimitados dos consumidores, ao regime da livre iniciativa, livre concorrência e defesa da propriedade privada.

A alocação de recursos na sociedade pode ser dar mediante três modelos: o primeiro em que as disposições concorrenciais “livres e naturais” ditam a política de preço, oferta e demanda, o segundo em que uma fonte exógena, instituída por um regime jurídico,  submete a distribuição de recursos pelo próprio Estado, que disporá sobre políticas de preço, distribuição e limitação de recursos de forma sintética e artificial.

Por fim, uma política híbrida, em que o Estado se submete ao regime concorrencial, agindo como “empresário”, somente delimitando ou limitando os reflexos concorrenciais de determinado setor da sociedade, primando por imperativos de segurança nacional e o interesse coletivo.

O presente artigo restringe a sua análise tão somente do seu objeto investigativo: o impacto concorrencial das novas tecnologias nas relações que tomam lugar no mercado de capitais.

No modelo concorrencial1, a prática livre entre os agentes, dentro de uma estrutura regulada de mercado, faz com que os recursos escassos sejam alocados eficientemente de acordo com disponibilidade, procura e o comportamento do consumidor, às relações estabelecidas podem impactar diretamente a condução de todo o mercado, instituindo a política de preços, escassez e seu dinamismo como um todo, atendendo aos anseios sociais, trazendo bem estar, melhor qualidade de vida e autonomia do mercado interno.

Isso significa dizer que: I – os agentes podem atuar no mesmo segmento de mercado, sem ser concedido monopólio ou regalias exclusivas, competindo entre si, por fatias e resultados decorrentes de operações de troca ali firmadas, ou seja, quem consegue se fixar no mercado e garantir vantagem concorrencial face aos demais agentes, consegue obter maiores margens de lucro; II – a livre concorrência também institui os limites práticos a serem observados pelos os agentes, prezando pela eticidade e boa fé e bom funcionamento do mercado;  III – dentro de um mercado em que há concorrência leal entre os agentes, a escolha dos consumidores, baseada em diversos fatores, afeta todas as relações dentro do mercado, impactando todos os agentes, inclusive quanto ao preço e disponibilidade dos recursos.

Portanto, é evidente que os arranjos competitivos dentro do mercado implicam na evolução dos mecanismos de comercialização e de obtenção de vantagem face aos outros agentes, porquanto esta vantagem se paute nos parâmetros regulatórios e éticos instituídos.

Sabidamente, são as liberdades econômicas que garantem a inovação, que por sua vez está relacionada ao desenvolvimento econômico. A atividade empresarial concentra em sua especialidade técnica um maior anseio pela complexificação dos arranjos produtivos e de troca, promovendo o desenvolvimento de institutos modernos na sociedade.

A quarta revolução industrial, impulsionada pelo boom da bolha .com, em decorrência da popularização do uso doméstico da internet, promoveu significativas alterações paradigmáticas no seio das relações mercantis.

Primeiro porque os mercados, enquanto espaços físicos foram superados por praças virtuais, alcunhadas de marketplaces, intermediando e conectando consumidores e fornecedores/prestadores de serviços, segundo porque rompe com barreiras geográficas, culturais e regulatórias, agentes em diferentes continentes, regidos por diferentes regulações passam a negociar, por fim que promove maiores possibilidades concorrenciais, elevando a competitividade internacional para outro patamar.

O mercado de capitais, locus  de negociação de valores mobiliários, possuindo como parte e contraparte as sociedades anônimas como agentes ofertantes deficitários, e os investidores, como agentes superavitários, exerce função precípua no desenvolvimento social e econômico, e como o mercado em  sentido lato sofre uma desmaterialização e complexificação dos meios concorrenciais, ele (o mercado de capitais) também se reconfigura com o impacto das novas tecnologias.

Desde que ocorreu a fusão entre BM&F Bovespa e CETIP em 2017, que eram as duas maiores instituições do setor do mercado de capitais, dando origem à B3, que esta opera exclusivamente através de operações digitais através de pregão virtual, via plataforma home broker.2

O processo de desmaterialização do mercado de capitais transformou a estrutura e o funcionamento dos mercados de bolsa e balcão, ultrapassando a mera digitalização das operações financeiras, automatizando e interconectando o sistema de negociação (incluindo as publicações ordenadas, emissão e demais procedimentos conexos à regulamentação) a um patamar completamente novo.

Essa migração para o ambiente virtual expandiu o acesso aos investidores, aumentou a eficiência e permitiu maior transparência no fluxo de informações entre os agentes, consolidando o mercado de capitais como um ambiente dinâmico e acessível.3

Contrapondo o sistema antigo de pregões virtuais, em que ofertas e suas consequentes arrematações eram efetivadas analogicamente, de forma caótica e estridente, a virtualização do sistema trouxe ordem e esquematização ao processo de emissão e  negociação de valores mobiliários. A plataforma (home broker) recebe as ofertas, que são expostas cronologicamente em um racional temporal e de valor, organizando a disposição de recursos, que são eventualmente arrematados pelos investidores.

Nesse modelo, o domínio e técnica de ferramentas tecnológicas e acesso e uso de dados, se tornam imprescindíveis, não haveria de ser diferente, a informação é circunscrita como o maior ativo da era Big Data.

O sistema virtual impulsionou o uso de tecnologias avançadas para operações mercantis. Um exemplo notório dessa evolução é o High-Frequency Trading (HFT), ou negociação de alta frequência, que consiste no uso de algoritmos avançados para executar elevado número de operações financeiras, alocando grande volume de recursos em curtíssimos intervalos de tempo.

A introdução do HFT trouxe impactos significativos para a concorrência e a liquidez no mercado. A liquidez refere-se à facilidade com que um ativo pode ser comprado ou vendido sem causar grandes oscilações em seu preço. Na teoria, a alta frequência gera maior liquidez, permitindo que os agentes de mercado executem ordens de serviços a preços mais próximos dos valores de referência, reduzindo a diferença entre os preços de compra e venda (spread).

Os formadores de mercado (market makers) são um exemplo prático da causa de aumento na liquidez do ambiente por força do HFT. Eles colocam uma grande quantidade de ordens de compra e venda em pequenos intervalos de tempo, facilitando transações de demais agentes e mantendo a circulação de ativos no próprio sistema.

Além disso, a velocidade e a frequência das transações contribuem para a formação de um preço mais eficiente e uma correção mais rápida de ineficiências, promovendo um sistema concorrencial mais dinâmico e sensível ao comportamento do mercado. A eficiência na formação de preços diz respeito à capacidade de o mercado refletir, em tempo real, o valor real de um ativo, considerando diversos fatores como oferta, demanda e expectativa.

Os algoritmos HFT são projetados para captar e reagir a mínimas flutuações de preço e a inserção de novas informações, de modo praticamente instantâneo. Tais algoritmos observam padrões de negociação e reagem a pequenas discrepâncias, de maneira a ajustar ordens de compra ou venda em frações de segundo, beneficiando a formação de preços por meio da rápida correção de ineficiências e da sensibilidade reacional às informações informações do sistema.

Muitas das vezes as operações ocorrem em milissegundos, cada fração temporal importa, é dessa forma que os investidores se beneficiam com a utilização de aparatos tecnológicos para negociar em alta frequência: a baixa latência, que conduz à uma rápida negociação sem instabilidade de rede, consegue captar micro oscilações comportamentais de mercado, lucrando antes que os spreads acima mencionados possam afetar o valor de mercado dos títulos.

Dessa forma, pode-se afirmar que o termo HFT é uma designação guarda chuva genérica para referenciar um apanhado de técnicas que conduzam a uma baixa latência, rápida captação de dados de mercado e consequentemente decisão de alienação ou aquisição de valores mobiliários.

Dentre as técnicas referenciadas, podemos mencionar a co-location  que traduz a prática de posicionar o servidor do agente (trader) fisicamente próximo ao servidor da bolsa de valores. Esse posicionamento geográfico reduz a latência de comunicação entre o servidor do HFT e da bolsa, permitindo uma velocidade de execução superior a dos concorrentes situados em locais mais distantes. Esta estratégia possibilita a captura de micro variações de preços, além de responder de maneira quase instantânea a novas informações de mercado.

Outra técnica utilizada é o aprendizado automatizado de máquina (machine learning), considerando a velocidade e o grande contingente de dados, se torna quase que impossível a capacidade humana de inferência e tomada de decisão se mostrar suficientes para que se obtenha a vantagem almejada, sendo necessário a utilização de inteligência artificial para coletar dados, inferir a melhor decisão de investimento e ainda de emissão dessas decisões ao sistema da bolsa.

A prática do HFT, contudo, também gera desafios éticos e regulatórios. A velocidade e a capacidade computacional demandadas para competir nesse ambiente criam barreiras de entrada para agentes de menor porte, levando a uma potencial assimetria concorrencial. Adicionalmente, estes algoritmos têm a capacidade de manipular preços ao induzir tendências de mercado, e o volume e a velocidade das transações também dificultam uma análise em tempo real de cada negociação.

A regulação, portanto, desempenha papel crucial para equilibrar as vantagens do HFT, protegendo, na medida do possível, o sistema concorrencial, na tentativa de promover uma equidade entre os agentes.

Deve-se ponderar que os mecanismos concorrenciais não podem gerar distorções no mercado, bem como impossibilitar a entrada de demais investidores no mercado, gerando um impasse a ser considerado pelo agente regulador, companhia emissora e demais intermediários: a utilização de HFT seria um aparato concorrencial que traria maior competitividade e qualidade nas operações de mercado, ou seria uma ferramenta que ensejaria no desequilíbrio no igualitarismo de mercado?

 

Notas

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1. Ressalta-se que não é o posicionamento defendido pelos autores no presente artigo que o modelo de economia de mercado seria algo orgânico, natural e autorregulável a ponto de não depender de mecanismos de controle e fiscalização. Dentro de um modelo mais amplo e regulado, as práticas de mercado regulam de forma autônoma as questões de preço e alocação.

2. Vale ressaltar que o último pregão viva voz ocorreu em setembro de 2005. Contudo, a organização e unificação das atividades de emissão, oferta, compensação e liquidação dos mercados de bolsa e balcão ocorreram, contribuíram para a sistematização e estruturação do regime virtual das atividades gerais de mercado.

3. Vale dizer que a acessibilidade não é universal, tendo em vista tanto a força quanto a educação tecnológicas exigidas para o pleno acesso ao mercado de capitais. Contudo, em comparação ao cenário anterior, a virtualização do sistema representa um avanço significativo em termos de democratização do mercado.

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