Em tempos de mini-influencers, importante falarmos seriamente sobre o incesto financeiro de ativos digitais.
A nomenclatura “incesto” é forte e nos remete à mitologia grega, momento em que Sófocles, escritor da peça de teatro “Édipo Rei”, descreve o relacionamento entre a mãe (Jocasta) e filho (Édipo) que, após Jocasta ficar viúva de Laio, Édipo e ela se casam, antes de saber desta questão parental.
O Incesto, apesar de ter sua origem ligada à sexualidade, há também o “Incesto Financeiro”,1 e neste caso, referimo-nos ao comportamento abusivo dos pais em relação aos filhos pequenos, em assuntos relativos a dinheiro.
O incesto financeiro pode ocorrer de forma direta ou indireta. Na forma direta concerne na hipótese de os pais forçarem as crianças a trabalhar de modo a interferir na rotina dela, para ganhar dinheiro, seja a fim de complementar a renda familiar ou como fonte exclusiva de renda familiar.
A forma direta também ocorre quando os pais pedem aos filhos que peçam dinheiro (ou outro tipo de ajuda material) para outras pessoas, a fim de usar a vulnerabilidade infantil, e com ela, obter o dinheiro, por exemplo.
A forma indireta de incesto financeiro é ligada à manipulação de fatos na tentativa de eximir-se das responsabilidades, ou ainda, usar de problemas e restrições financeiras para colocar os filhos “contra” alguém (tipicamente um cônjuge ou ex-cônjuge).
Vejam o trabalho infantil no Brasil, infelizmente não é um tema novo, apesar dos inúmeros Tratados, Convenções e Leis, os quais abordam essa problemática, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD – em 2020, 79 milhões de crianças entre 5 e 17 anos são vítimas de trabalho infantil no mundo.2
No nosso ordenamento jurídico por exemplo, temos a Constituição Federal em seu artigo 7º, inciso XXXIII; a Consolidação das Leis do Trabalho, art. 428, e o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 67, que tratam do trabalho de crianças e adolescentes, e estes dispositivos ainda são insuficientes para protegê-las de fato.
Entretanto, há espécies de trabalho infantil que passam desapercebidas devido ao glamour com que são desenvolvidas, por exemplo, trabalho infantil artístico, ou o trabalho infantil indireto, pela Internet via mídias digitais.
Quando unimos o termo “Incesto Financeiro” a “Ativos Digitais”, estamos nos referindo à forma como os pais “usam” os filhos pequenos, atribuindo a eles a responsabilidade de dedicar-se à criação de conteúdo digital, a fim de angariar seguidores e monetizar as páginas e perfis.
O sistema de capitalização do YouTube, por exemplo, é sob monetização, quanto mais visualizações, mais dólar capitalizado para o produtor, pois quanto mais visualizações, mais os colaboradores propagaram seus anúncios aos internautas.
O sucesso desse modelo de negócio, gerou por consequência uma “profissão” conhecida como youtuber, em que o indivíduo com um canal na plataforma é produtor de vídeos, cujo intuito é conseguir o maior alcance possível com inscrições, visualizações e curtidas, proporcionalmente convertidas em dólar.
Existem diversos tipos de youtubers, citamos alguns: gamers, comediantes, atores, empreendedores, músicos, cozinheiros, fitness, gospel, educativos, coaching e ainda uma infinidade de variedades.
Nesse tipo de exercício profissional, alguns exercem essa atividade como uma atividade profissional secundária, sendo uma fonte de renda extra, conciliando com a atividade principal.3
Há aqueles que exercem como atividade principal ou ainda exclusiva, sendo ela a única fonte de renda. A remuneração estimada para pagamento dos youtubers no Brasil é considerada a cada 1000 visualizações, a partir delas, ele recebe aproximadamente U$1,65 dólares.4
No entanto outros, Digitais Influencers5 produzem material (inclusive os “mini- influenciadores”) para alimentar todos os dias os seus canais, cuja finalidade principal é atrair milhares de seguidores para suas redes sociais e, também, as marcas que se identificam com o seu público de seguidores.
A partir daí, passam a receber como “pagamento” pela produção de conteúdo alguns patrocínios em brindes, dinheiro, ou, ainda, permuta de serviços.
Essa cadeia produtiva de conteúdo dirigido, comprometida em divulgar em seus canais o produto do patrocinador, a fim de aproximar o fornecedor do mercado consumidor de uma forma aparentemente “natural”, quando tem como protagonista uma criança, temos aqui então o “Incesto financeiro de ativos digitais”.
Isso porque estas “estrelas digitais mirins” não percebem que se trata de um trabalho, de contratos com cláusulas que abordam casos de descumprimento e, assim, cedem a elaboração de conteúdo em série, pois acabam seduzidas por toda a atenção recebida, porém, inevitavelmente os prejuízos sofridos em longo prazo podem ser devastadores, pelo abuso do regular exercício do poder parental.
Acabam essas “estrelas digitais mirins” envolvidas em demoradas sessões de fotos e eventos, em encontro marcado com direito a fotos com fãs, além da necessidade de criar e gravar conteúdo diariamente.
Fatos que retiram a sua infância, o seu direito a um crescimento saudável, rotina escolar e estarem rodeadas por brincadeiras.
Já temos ouvido inúmeros casos de crianças que se sentem obrigadas a permanecer gravando conteúdo devido à dependência familiar do valor arrecadado na página, ou mesmo pelo sentimento de culpa em negar aos seus pais que se colocam como aqueles que dedicaram seu tempo a levar a criança ao estrelato.
Dessa forma, distúrbios emocionais desta relação parentais são comuns, também temos os danos à imagem, pelo excesso de exposição, e de conteúdos despejados na Internet, danos à autoestima diante de quaisquer documentários negativos gerados pelo compartilhamento de vídeos, fadiga, queda no rendimento escolar, baixa autoestima entre outros fatores.
De acordo com o estudo TIC Kids Online Brasil de 2021, realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 78% das crianças e adolescentes (de 9 a 17 anos) têm perfis próprios nas mídias sociais.6
No YouTube, segundo uma pesquisa da ESPM Media Lab, a audiência saltou de 20 para 50 bilhões de visualizações de vídeos voltados ao público infantil apenas entre os anos de 2015 e 2016 – e a categoria dos youtubers mirins cresceu 564%.7
No entanto, é sabido que a idade mínima para registrar uma conta no Google, consequentemente no YouTube, é de 13 anos, o Facebook e Instagram seguem a mesma regra. Entretanto, muitos mini-influenciadores se lançam às redes a partir de contas avalizadas pelos pais, ou, ainda, adicionam alguns anos à sua idade no ato de criação da conta.
Assim, é seguro afirmar que os influencers digitais estão trabalhando em um serviço informal desenvolvido pela família, pois, de outra forma, a criança não teria uma página com conteúdo nela postado para monetizar.
Há pediatras que enfatizam que os influenciadores mirins têm um trabalho, na medida que “essas crianças costumam ter a agenda cheia, e os pais acabam se dedicando às diversas atividades do filho. É preciso ter cuidado para os responsáveis não estarem “terceirizando” a tarefa de prover, porque a atividade pode facilmente virar um negócio”.8
E, pelo fato de o menor de idade não ter capacidade civil plena para exercer suas vontades, não pode administrar os recursos financeiros advindos do seu conteúdo digital, apenas deles usufruir, “A criança não tem o direito de exigir que o dinheiro seja usado exclusivamente em seu proveito, apenas pedir.
A administração costuma ficar a critério dos pais, e conforme o caso poderá acarretar abuso deste exercício gerando aqui o nomeado incesto financeiro de ativos digitais”.
A hiperexposição causada pela atividade remunerada exercida pelos pequenos é preocupante, face aos riscos do acesso à Internet sem supervisão dos pais com a superexposição, logo, deparamo-nos com os seguintes problemas.
A tecnologia ilimitada para a criança pode comprometer seriamente sua relação social baseada no afeto, causar déficit de atenção por conta dos estímulos de alta frequência de jogos eletrônicos, gerar hiperexposição (ocasionando o bullying ou cyberbullying), a hiperssexualização (a qual pode levar de forma não intencional a uma situação que envolva pedofilia), entre outros problemas.
A imposição dos pais9 às crianças, para criação de conteúdo, seja por meio de gravações de vídeos ou participação de eventos, fere o direito à imagem e a dignidade das crianças, protegidos pelo ECA – Lei 8.069/1990 artigos 17 e 18 e pela Constituição Federal.
Essa atitude pode transformar-se em um abuso do poder familiar, levando-o inclusive a um possível dever de indenizar por pais destes pais, além do risco da perda do poder familiar e da guarda em si.
Temos, como exemplo, o relatado na autobiografia “I’m glad my mom died“, de Jennette McCurdy, em que a atriz revela detalhes de como sua mãe, Debbie McCurdy, ficou obcecada em torná-la uma estrela Nickelodeon, o que a levou à ansiedade, vergonha e autoaversão que se manifestaram em distúrbios alimentares, vício e uma série de relacionamentos não saudáveis.
O trabalho infantil cibernético, também, pode levar as crianças a estarem sujeitas a transtorno psicológicos e associar-se à “cultura de likes”, o vício em ser notado instantaneamente e se definir pelo número de interações dadas a uma publicação em uma rede social.
A criança que depende de like é viciada como se fora dependente de qualquer outra droga, objetificando a criança, pois ela não é vista pelo que ela é, mas pelos likes que consegue.
Sem dúvida, a principal consequência do trabalho infantil, seja físico ou cibernético, é a perda de sua infância, que cria um ciclo abrangendo as duas pontas, sendo ela o fator universal, antecedente ou precedente.
Ressaltamos, porém, que nem sempre as consequências desse ciclo podem ser desfeitas, precisamos ficar alertas, alertar os pais ou caso o abuso permaneça, buscar autoridades competentes10 para a proteção da criança e do adolescente.
Referências
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1. Termo cunhado pelo psicólogo e planejador financeiro Brad Klontz, é Fundador do Financial Psychology Institute® e Professor Associado de Prática em Psicologia Financeira na Creighton University Heider College of Business.
2. Informação disponível em: https://bit.ly/3RSz8kW
3. Lima Filho, Francisco de Assis de Oliveira; Marcelino, Cecília Paranhos Santos. Trabalho infantil cibernético: riscos e consequências da fama na internet Cyber child labor: risks and consequences of fame on the internet. Rev.Bras.de Direito e Gestão Pública (Pombal, PB), 8(03), 875-888, jul./set.2020. Disponível em: https://bit.ly/3IjVAAs
4. Autoria Equipe Renderforest. Quanto ganham os YouTubers em 2022? Disponível em: https://bit.ly/3YoQ19j
5. Influenciadores que mantêm canais no YouTube, fanpages no Facebook e perfis no Instagram.
6. Informação obtida: https://bit.ly/3Ys4Ms3
7. Informação obtida: https://bit.ly/3luzmmi
8. Médica psicoterapeuta Márcia Mossurunga – Informação obtida: https://bit.ly/2FDriXQ
9. Código Civil – Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
10. O Ministério Público do Trabalho atua na captação e investigação de denúncias, para fazer uma denúncia online, basta acessar: https://bit.ly/3HWo9T7