Como se sabe, com a aprovação e vigência da lei 14.181 de 2021 – a nova Lei do Superendividamento –, novos adventos jurídicos tiveram introdução a nosso ordenamento jurídico, dentre às quais, surgiram novas hipóteses de cláusulas abusivas para compor o rol exemplificativo do art. 51 de nosso Código de Defesa do Consumidor. Isto é, novas interpretações de cláusulas, capazes, identificadas tais abusividades, de violar o equilíbrio material que deve existir entre as prestações.
Tais previsões se encontram nos incisos XVII e XVIII do art. 51, do CDC, veja:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
XVII – condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário;
XVIII – estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores;
Com relação primeiramente, ao inc. XVII, perceba que o mesmo estabelece a nulidade da cláusula contratual que, de algum modo, invista no condicionamento ou limitação de acesso do consumidor aos órgãos do Poder do Judiciário, bem como acorda o art. 5º, inciso XXXV de nossa Constituição, no sentido de que a lei nao excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O que se constata, portanto, é que a Lei do Superendividamento inclui no rol de cláusulas abusivas um instrumento que vise tornar nula toda e qualquer menção contratual que tenha como finalidade impedir que o consumidor faça valer seu direito de buscar jurisdição quando a mesma se fizer imprescindível na defesa de seus interesses consumeristas.
Afinal, se a Lei não possui o condão de excluir uma lesão ou ameaça a direito da apreciação do judiciário, quiçá um contato gozaria. Fato é que a introdução, infelizmente, trás a infame conclusão de que nossa sociedade se encontra em tempos nebulosos, senão, em galopante atraso… haja vista a necessidade gritante de introduzir um tópico em nosso rol de cláusulas abusivas apenas para reforçar, pasmem, um preceito constitucional!
Quanto ao inciso XVIII, temos nele a figura jurídica que remete à purgação ou mesmo à emenda à mora. Noutros termos, visualiza-se a neutralização dos efeitos da mora, em que pese o devedor, se perfazendo com a sujeição voluntária aos efeitos da mora, conforme indica o art. 401, inc. I, do código Civil:
Art. 401. Purga-se a mora:
I – por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;
Veja, a finalidade do inc. XVIII, nada mais, é que impedir que o consumidor que purgue a mora e busque uma conciliação sofra prejuízos nos serviços contratados. Portanto, que sejam os referidos mantidos ou restabelecidos em caso de suspensão, finalidade protetiva ao consumidor que se simboliza em recente decisão do STJ:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EMPRÉSTIMO BANCÁRIO. MÚTUO FENERATÍCIO. DESCONTO DAS PARCELAS. CONTA-CORRENTE EM QUE DEPOSITADO O SALÁRIO. AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA 603/STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
2. Dispõe a Súmula 603/STJ que “é vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual”.
Em suma, como se vê na atual visão do STJ com relação à cláusulas “abusivas”, é reprovável a desconsideração de valores basilares como o equilíbrio contratual, a função social do contrato, e, em ênfase, a boa-fé contratual pela utilização de cláusula revogável de autorização de desconto de prestações em conta corrente, assim como pela imposição das que que autorizam, de forma irrevogável, o desconto em folha de pagamento, como forma de manutenção do mínimo existencial, sob a 45 vista da súmula 603 do STJ.
Tais práticas, por sinal, apenas reforçam a triste realidade do cenário consumerista brasileiro, vez que se visualizam casos nos quais cláusulas contratuais instituem prazos de carência em caso de impontualidade ou mesmo impedem o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores. Assim, a introdução de novos conceitos ao rol do art. 51, infelizmente, é imprescindível para uma dinâmica, verdadeiramente, funcional dos direitos do consumidor no Brasil, principalmente, daquele que se encontra superendividado.
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Referências
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ABDO, Natan Della Valle; FARIA, Gentil de; LUCCA, Marcelo de. Dever de mitigar o prejuízo e o superendividamento bancário. Leme: JH Mizuno, 2020.
BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Mínimo existencial instrumental e o papel dos CEJUSCs na restauração do vínculo da família superendividada. In: CAVALLAZZI, Rosângela Luanrdelli (org.); LIMA, Clarissa Costa de (org.); MARQUES, Claudia Lima (Org.). Direito do consumidor endividado II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Editora RT, 2016.
BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento: mínimo existencial: casos concretos. São Paulo: RT, 2015.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://bit.ly/3cr9MqH. Acesso em: 12 abr. 2020.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: https://bit.ly/3oCfThi. Acesso em: 01 abr. 2020.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://bit.ly/3r047jA. Acesso em: 13 ago. 2018.
BRASIL. LEI Nº 14.181, DE 1º DE JULHO DE 2021. Disponível em: https://bit.ly/3FLRxcf. Acesso em: 18 nov. 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial: 1555722/SP 2015/0226898-9, Rel. Min. LÁZARO GUIMARÃES (Des. Convocado do TRF 5ª REGIÃo), 2ª Seção, julg: 22 ago. 2018; pub: 25 set. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3FzZ6CF. Acesso em: 01 nov. 2021.