- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O art. 477, § 8º, da Consolidação das Leis do Trabalho estabelece uma multa sancionatória ao empregador que não paga, no prazo legal, as verbas rescisórias ou não entrega a documentação necessária à formalização da extinção contratual. Trata-se de um mecanismo de grande relevância prática, pois o momento da rescisão é um dos mais críticos da relação de emprego, em que o trabalhador se encontra em situação de vulnerabilidade econômica e depende de recursos imediatos para sua subsistência.
Por se tratar de sanção, a interpretação do § 8º deve ser restritiva, em consonância com os princípios do direito sancionador. Nesse passo, as penalidades não podem ser estendidas além do texto legal, sob pena de violação à legalidade e à separação de poderes. A multa tem, assim, função protetiva e pedagógica, mas dentro dos limites expressamente previstos pela lei.
Apesar dessa premissa, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou dez teses vinculantes sobre o dispositivo1, formando um verdadeiro “multiverso” interpretativo. Algumas reforçam a leitura restritiva da norma, mas outras ampliam sua aplicação a hipóteses não previstas diretamente no texto legal. Esse movimento tem gerado intenso debate sobre os limites da atuação interpretativa do Judiciário trabalhista, especialmente quando a jurisprudência assume feição normativa.
O presente estudo examina criticamente essas dez teses, dividindo-as em três grupos: (i) aquelas que não ampliam a aplicação da multa; (ii) aquelas que a estendem por interpretação extensiva, o que exige reflexão crítica à luz do precedente do STF na ADPF 5012, que vedou a ampliação jurisprudencial de sanções; e (iii) a Tese 164, que merece considerações adicionais por suscitar dificuldades específicas. O objetivo é oferecer análise acadêmica equilibrada, confrontando a função protetiva da norma com os limites constitucionais da legalidade.
- NATUREZA E FINALIDADE DA MULTA DO ART. 477, §8º DA CLT
art. 477, § 8º, da CLT representa uma das sanções mais relevantes do direito do trabalho, pois incide em um momento de especial vulnerabilidade: a cessação do contrato. A lei prevê que, se o empregador não adimplir, no prazo de dez dias, as verbas rescisórias devidas e a documentação necessária para formalizar a rescisão, incidirá multa em favor do trabalhador. Trata-se de dispositivo de natureza protetiva, que busca evitar que a ruptura contratual se converta em período de desamparo, tendo em vista a dependência do salário para a manutenção da vida digna.
A origem da norma evidencia sua função de coerção: garantir efetividade às verbas rescisórias e impedir que o empregador adie o pagamento sem consequências. A sanção, nesse sentido, atua como tutela de urgência diante da assimetria estrutural da relação de emprego. Sem a multa, seria elevado o risco de atrasos sistemáticos que agravariam a vulnerabilidade econômica do trabalhador justamente no momento mais crítico do vínculo laboral.
A natureza jurídica da multa tem sido objeto de debate doutrinário. Parte dos estudiosos a concebe como penalidade autônoma, não confundível com indenização civil, dada sua previsão objetiva e específica. Alexandre Pimenta Batista Pereira3 sustenta que a obrigação é um ato complexo em sentido estrito: exige o pagamento das verbas e a entrega da documentação no prazo legal. Não se trata, contudo, de ato complexo ilimitado, pois a lei não abrange obrigações acessórias como homologações ou registros posteriores. A moldura é precisa: pagamento e documentos.
Essa delimitação impõe atenção ao princípio da interpretação restritiva das sanções. Embora dotada de função protetiva, a multa é norma punitiva e, portanto, só pode ser aplicada dentro dos contornos estabelecidos em lei. Ressalta-se que a expansão interpretativa em matéria sancionatória é vedada, pois transforma o Judiciário em legislador positivo. A interpretação restritiva, ao contrário, assegura previsibilidade e preserva a separação de poderes.
O princípio da legalidade, especialmente em matéria sancionatória, assume feição constitucional. Criar hipóteses punitivas fora do texto legal não apenas compromete a segurança jurídica, mas viola a própria arquitetura da separação de poderes. Cabe ao Judiciário aplicar a sanção nos limites do que o legislador previu; ao legislador, e somente a ele, cabe instituir novos fatos geradores. Essa distinção é ainda mais relevante em normas que impõem obrigações pecuniárias automáticas.
A reforma trabalhista de 2017 reforçou essa objetividade ao unificar o prazo de dez dias, previsto no § 6º, para pagamento e entrega de documentos. Como analisam Poli e Diniz4, a mudança buscou eliminar ambiguidades e consolidar marco temporal uniforme, reduzindo disputas interpretativas. O § 8º, assim, deve ser lido em articulação com o § 6º: descumprido o prazo, aplica-se a sanção. A clareza da regra reforça que não cabe ampliar a incidência para obrigações alheias ao pagamento e à documentação.
A sanção, portanto, está vinculada a um núcleo essencial: mora no pagamento ou na documentação rescisória5. Ampliar a multa a obrigações externas, como homologações ou comunicações administrativas, compromete a moldura normativa. Essas condutas podem ter consequências jurídicas próprias, mas não configuram, em si, o fato gerador do § 8º. Essa compreensão preserva a objetividade da sanção e evita interpretações que fragilizem a segurança jurídica.
A leitura de Rodolpho Cézar Aquilino Bacchi6 acrescenta outro aspecto: a função pedagógica da multa. Ela deve reafirmar a autoridade normativa da CLT, garantindo ao trabalhador confiança na efetividade de seus direitos. Contudo, Bacchi7 adverte que essa função não legitima expansões hermenêuticas: quando a multa se aplica fora do texto legal, perde seu caráter educativo e gera insegurança. A pedagogia da sanção depende de sua previsibilidade.
Nesse contexto, a multa do art. 477 é híbrida: protetiva, por resguardar a subsistência do trabalhador, e sancionatória, por impor coerção ao empregador. Essa dualidade exige cautela: se a proteção social recomenda efetividade, a dimensão sancionatória impõe contenção. A dogmática trabalhista deve equilibrar eficácia de direitos e respeito ao princípio da legalidade, sob pena de converter a proteção em justificativa para ativismo judicial.
Por fim, a estrutura do dispositivo revela a opção legislativa por critérios objetivos e verificáveis. O prazo de dez dias confere clareza e reduz margens de dúvida, o que é essencial em sanções automáticas. A ampliação jurisprudencial desse alcance compromete a previsibilidade e gera instabilidade, afetando não apenas empregadores, mas também trabalhadores que passam a conviver com interpretações variáveis. A compreensão restritiva, assim, não esvazia a tutela, mas reforça sua legitimidade.
- O MULTIVERSO DAS TESES VINCULANTES
- A Mecanismos de Controle e Gerência nas Plataformas
Nas últimas décadas, a ascensão das plataformas digitais de trabalho tem promovido uma reconfiguração profunda das formas de organização produtiva. Empresas como Uber, iFood, Rappi e tantas outras passaram a intermediar relações de trabalho sem assumir formalmente a posição de empregadoras. Em vez disso, afirmam apenas operar como “pontes tecnológicas” entre consumidores e prestadores de serviços. Essa roupagem empresarial, embora juridicamente estratégica, oculta o poder de direção efetivamente exercido por essas plataformas e escamoteia uma série de restrições relevantes aos direitos fundamentais dos trabalhadores que nelas atuam.
Algumas das teses fixadas pelo Tribunal Superior do Trabalho revelam postura de contenção interpretativa, mantendo a multa do art. 477, § 8º, dentro do campo delimitado pela própria legislação. É o caso, por exemplo, da Tese 127, que reconhece a incidência da sanção quando o empregador deixa de entregar, no prazo legal, os documentos rescisórios necessários para a efetivação da extinção contratual. A decisão não inova, mas reafirma o que já está previsto no § 6º, segundo o qual o prazo de dez dias se aplica tanto ao pagamento das verbas rescisórias quanto à entrega da documentação. A omissão quanto a esse aspecto compromete o acesso do trabalhador a benefícios previdenciários, FGTS e seguro-desemprego, de modo que a jurisprudência apenas explicita a consequência já delineada pelo legislador.
Nessa mesma linha de leitura restritiva situa-se a Tese 186, que delimitou não ser cabível a multa em razão de atraso na homologação da rescisão, desde que as verbas rescisórias e a documentação tenham sido entregues no prazo legal. Essa compreensão evita a transformação da multa em sanção por descumprimento de formalidades externas ao núcleo essencial da obrigação. Ao afastar a homologação como elemento autônomo de incidência, o TST preserva a coerência do dispositivo e reforça a ideia de que a penalidade está vinculada ao atraso no pagamento e na documentação, e não a outros ritos acessórios.
Outro ponto de destaque é a Tese 142, que afirma que a multa incide sobre todas as parcelas de natureza salarial, não apenas sobre o salário-base. A interpretação não amplia a sanção, mas concretiza o conceito de verbas rescisórias, que engloba o conjunto das prestações salariais devidas até o momento da extinção do contrato. Se fosse admitido que a multa pudesse ser evitada com o pagamento apenas do salário contratual, restariam descobertas parcelas como adicionais, horas extras e gratificações, o que esvaziaria o alcance do dispositivo. A leitura, portanto, é restritiva em sentido técnico, porque apenas reconhece a abrangência das verbas devidas, sem criar novos fatos geradores.
A Tese 139 também se insere no grupo das interpretações contidas, ao definir que a recuperação judicial, diferentemente da falência, não afasta a incidência da multa. O raciocínio está de acordo com a moldura normativa: na recuperação, a empresa permanece em atividade e, portanto, mantém os deveres trabalhistas correntes. Não se trata de estender a sanção a uma hipótese não prevista, mas de reconhecer que as dificuldades financeiras não isentam o empregador de cumprir o prazo legal. A interpretação reafirma a natureza protetiva da multa, sem transformá-la em instrumento de ativismo, pois apenas delimita que a exclusão da penalidade em caso de falência não pode ser aplicada por analogia à recuperação judicial.
Por fim, merece menção a Tese 238, que afastou a multa na hipótese de falecimento do empregado. Aqui, a lógica é oposta à da recuperação judicial: não há mora do empregador, mas extinção contratual decorrente de fato alheio à sua vontade. A exclusão da penalidade reforça o caráter sancionatório do instituto, que pressupõe conduta imputável ao empregador. Embora os sucessores do trabalhador falecido mantenham o direito de receber as verbas rescisórias devidas, não há base legal para impor uma penalidade cuja razão de ser — o atraso culposo do empregador — não se verifica.
O exame conjunto dessas teses demonstra que, em algumas situações, o TST manteve fidelidade à diretriz de interpretação restritiva das normas sancionatórias. A multa foi aplicada nos casos em que a própria lei prevê sua incidência — atraso no pagamento ou na entrega dos documentos — e afastada em hipóteses em que não se identifica conduta culposa do empregador. Assim, a jurisprudência contribuiu para consolidar parâmetros que evitam tanto a impunidade quanto o alargamento indevido do dispositivo.
É interessante notar que, embora contenham conclusões diversas — ora pela aplicação, ora pela exclusão da multa —, todas essas teses compartilham uma mesma lógica metodológica: a vinculação ao texto legal. Em nenhum dos casos o TST buscou criar hipóteses sancionatórias por analogia ou extensão, mas apenas esclareceu a aplicação da norma em situações já abrangidas pela letra da lei. Essa coerência metodológica é central para reforçar a legitimidade das decisões e para distingui-las daquelas que, como veremos em seguida, acabam ampliando a incidência da penalidade.
Também se observa que essas teses preservam a segurança jurídica, na medida em que oferecem critérios objetivos de aplicação. O empregador sabe que deve pagar todas as verbas de natureza salarial e entregar a documentação rescisória em até dez dias, sob pena de multa; sabe igualmente que dificuldades financeiras não afastam a obrigação, salvo em caso de falência; e que o falecimento do trabalhador não gera a penalidade. Esse grau de previsibilidade é fundamental no direito sancionador e garante equilíbrio entre proteção do empregado e limites constitucionais de legalidade.
Outro aspecto que merece destaque é a consistência dessas teses com a função pedagógica da multa. Ao exigir o cumprimento rigoroso das obrigações centrais — pagamento integral e documentação —, o TST reforça a autoridade da norma e dissuade práticas de atraso, sem, contudo, ampliar indevidamente o campo de incidência. Trata-se de exemplo de como é possível compatibilizar a eficácia protetiva do instituto com a contenção hermenêutica exigida em matéria de sanção.
Em síntese, as teses 127, 139, 142, 186 e 238 conformam um grupo coeso de interpretações que não ampliam a aplicação da multa, mas reforçam sua aplicação restrita e objetiva. Constituem, portanto, um núcleo de estabilidade dentro do “multiverso” jurisprudencial, demonstrando que, em alguns momentos, o TST se manteve fiel ao princípio da legalidade e ao sentido estrito da norma sancionatória.
- Teses com interpretação extensiva
Diferentemente do grupo anterior, que manteve a incidência da multa do art. 477, § 8º, dentro dos limites previstos pela lei, há teses que avançaram para hipóteses não contempladas expressamente pelo legislador. Essas interpretações, embora guiadas por uma lógica protetiva, colocam em evidência o problema da legalidade estrita em matéria sancionatória. Entre elas, destacam-se as que tratam da rescisão indireta reconhecida em juízo, da reversão da dispensa por justa causa e do reconhecimento judicial do vínculo de emprego.
No caso da rescisão indireta, consolidada na Tese 52, a dificuldade repousa no momento em que surge a obrigação de pagar e entregar a documentação rescisória. Até o reconhecimento judicial da justa causa patronal, o contrato permanece formalmente em vigor e o empregador não tem como cumprir, de antemão, as obrigações típicas de uma dispensa. A fixação da multa, nesse contexto, adquire caráter retroativo, pois penaliza o empregador por não ter cumprido um prazo que, na prática, só se tornaria exigível após a decisão judicial. A doutrina de Alexandre Pimenta Batista Pereira8 é útil para iluminar esse ponto: a multa deve ser entendida como decorrente de um ato complexo, mas delimitado pela lei — o pagamento e a entrega dos documentos no prazo legal. Ampliar essa moldura para abarcar a rescisão indireta antes de seu reconhecimento judicial significa transformar a obrigação em um “ato complexo ilimitado”, o que não encontra respaldo no texto da CLT.
A mesma lógica de expansão se verifica na Tese 71, relativa à reversão da dispensa por justa causa. Nessa hipótese, o TST determinou que, uma vez declarada a improcedência da justa causa, a multa é devida, como se o empregador tivesse obrigação de pagar desde o primeiro momento todas as verbas típicas da dispensa imotivada. Ocorre que, no momento da rescisão, o empregador considerava devidas apenas as verbas proporcionais da justa causa, amparado pela presunção de validade do seu ato. Exigir o pagamento imediato das verbas como se fossem incontroversas, sob pena de multa, significa desconsiderar o caráter litigioso da situação. Cumpre ressaltar que normas sancionatórias não podem ser interpretadas de forma a abranger situações controvertidas, justamente porque a previsibilidade é parte de sua natureza. A multa, aqui, deixa de incidir sobre um atraso objetivo e passa a punir uma escolha jurídica posteriormente tida como incorreta, o que destoa do seu desenho legal.
Ainda mais delicada é a Tese 168, que reafirmou a Súmula 462 e determinou a incidência da multa mesmo quando o vínculo de emprego é reconhecido apenas em juízo, salvo se comprovado que o trabalhador deu causa à mora. Esse entendimento amplia consideravelmente a incidência da sanção, pois parte da premissa de que o empregador deveria ter cumprido uma obrigação cujo fundamento jurídico só foi declarado posteriormente. Até o reconhecimento judicial, não havia prazo legal a ser observado, uma vez que, formalmente, não havia contrato de trabalho. A doutrina de Pereira9 reforça essa crítica ao assinalar que a multa pressupõe prazo objetivo e certo, vinculado ao término contratual reconhecido. Sem esse marco, a mora é uma ficção, criada apenas para justificar a sanção.
A justificativa protetiva é recorrente em todos esses casos. Argumenta-se que, ao negar o vínculo, ao aplicar indevidamente a justa causa ou ao resistir ao reconhecimento da rescisão indireta, o empregador frustra direitos básicos do trabalhador, devendo ser sancionado de forma mais severa. Contudo, como lembram Poli e Diniz10, a reforma trabalhista de 2017 procurou justamente reforçar a objetividade e a clareza do prazo, fixando dez dias como marco temporal único para pagamento e entrega dos documentos rescisórios. Essa objetividade se perde quando a sanção é estendida a hipóteses cuja obrigação só nasce após decisão judicial.
A dimensão pedagógica da multa, destacada por Bacchi11, também não se sustenta quando a sanção é aplicada em hipóteses não previstas na lei. O caráter educativo exige previsibilidade, pois só assim a penalidade cumpre sua função de dissuadir comportamentos ilícitos. Quando a jurisprudência cria hipóteses novas, o efeito pedagógico se converte em insegurança, e a multa deixa de ser instrumento de coerção para se tornar punição imprevisível. Chama-se a atenção para esse risco: a boa intenção protetiva não pode legitimar a extrapolação do texto legal, sob pena de desfigurar o próprio instituto.
É nesse ponto que a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 501 ganha relevância. Ainda que tenha tratado de outro tema — a multa pelo atraso no pagamento das férias —, o STF foi categórico ao afirmar que a interpretação extensiva em matéria sancionatória viola a legalidade e a separação de poderes. A Corte entendeu que o TST não poderia, por súmula, ampliar a incidência de penalidade sem respaldo legislativo. O raciocínio é plenamente aplicável às teses ora analisadas: em todas elas, o TST construiu hipóteses de aplicação da multa sem que houvesse previsão legal explícita.
Essa tensão entre proteção e legalidade é um traço característico da jurisprudência trabalhista, mas, no caso das Teses 52, 71 e 168, os limites parecem ter sido ultrapassados. A sanção, que deveria incidir sobre mora objetiva e vinculada a prazo certo, passa a ser aplicada em situações de incerteza ou de reconhecimento judicial posterior. A consequência é a transformação da multa em um mecanismo punitivo amplo, que se afasta de sua natureza restritiva e objetiva. Pereira, Poli e Bacchi convergem, cada um a seu modo, na advertência de que esse caminho compromete tanto a segurança jurídica quanto a legitimidade do instituto.
O resultado é um campo interpretativo em que a função protetiva da norma convive com a criação de obrigações pecuniárias novas, não previstas no texto da CLT. Essa sobreposição de papéis revela um fenômeno de ativismo jurisprudencial que, ainda que motivado por finalidades sociais relevantes, desafia os parâmetros constitucionais da legalidade e da separação de poderes. É justamente esse descompasso que transforma as teses extensivas no ponto mais problemático do “multiverso” construído pelo TST em torno da multa do art. 477, § 8º.
- AS LACUNAS DA TESE 164
A Tese 164 fixou que o pagamento parcial ou a menor das verbas rescisórias, quando as diferenças são reconhecidas apenas em juízo, não enseja a aplicação da multa prevista no art. 477, § 8º, da CLT. A leitura, em princípio, parece coerente com a natureza restritiva da sanção, pois evita que a multa seja aplicada em situações em que o empregador quitou tempestivamente as verbas que entendia devidas, sendo o acréscimo decorrente de decisão judicial superveniente. A mora, nesses casos, não decorre de atraso, mas de divergência interpretativa quanto ao alcance de determinados direitos.
O problema, contudo, está na redação genérica da tese, que pode dar margem à exclusão da multa mesmo em hipóteses em que havia verbas manifestamente devidas e incontroversas, como férias proporcionais e décimo terceiro em caso de rescisão contratual. Nessas situações, não se trata de diferença apurada apenas em juízo, mas de verbas básicas, cujo pagamento tempestivo é exigência mínima do empregador. A doutrina de Pereira12 é útil para esclarecer esse ponto: a multa decorre de um ato complexo claramente previsto pela lei — pagamento integral e entrega da documentação —, de modo que a omissão em parcelas incontroversas caracteriza mora sancionável, independentemente de outras discussões judiciais.
Se reforça que a interpretação restritiva não pode ser confundida com a supressão da finalidade protetiva da norma. O afastamento da multa em casos de mera controvérsia é legítimo, mas sua não aplicação em hipóteses de inadimplemento objetivo de verbas essenciais compromete a eficácia do dispositivo. A clareza do § 6º, especialmente após a reforma trabalhista analisada por Poli e Diniz, reforça que o empregador deve quitar, em até dez dias, todas as parcelas rescisórias que sejam incontroversamente devidas. O não cumprimento desse núcleo essencial deve atrair a incidência da sanção.
Dessa forma, a Tese 164 ocupa posição intermediária no “multiverso” construído pelo TST. Por um lado, adota postura contida ao afastar a multa em situações de diferenças reconhecidas apenas em sentença; por outro, exige leitura cuidadosa para não ser utilizada como justificativa para a inadimplência de parcelas evidentes e fundamentais. A advertência feita por Bacchi13 sobre a função pedagógica da multa é novamente pertinente: o instituto só cumpre sua finalidade se for previsível e aplicado quando há mora inequívoca, mas perde eficácia se for afastado mesmo diante do não pagamento de verbas incontroversas.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise do “multiverso” jurisprudencial em torno do art. 477, § 8º, evidencia um eixo comum que não pode ser perdido de vista: a multa tem finalidade protetiva e pedagógica, mas natureza sancionatória, devendo ser aplicada nos estritos limites definidos em lei. A moldura normativa — pagamento integral das verbas rescisórias e entrega da documentação no prazo de dez dias — conforma um ato complexo em sentido estrito, como sublinha Pereira, e constitui o núcleo duro do fato gerador.
Sob essa lente, o primeiro conjunto de teses (127, 139, 142, 186 e 238) preserva a coerência do instituto ao não ampliar hipóteses de incidência: reforça-se o dever de pagar e documentar tempestivamente, excluem-se ritos externos ao núcleo legal e situações alheias à vontade do empregador. Já o segundo conjunto (52, 71 e 168) projeta a sanção para cenários não contemplados pelo texto legal — rescisão indireta e justa causa dependentes de reconhecimento judicial, e vínculo declarado apenas em juízo — tensionando a legalidade estrita que se reclama para normas punitivas e que foi reafirmada pelo STF na ADPF 501.
A Tese 164, por sua vez, demanda calibragem interpretativa: é adequada ao afastar a multa quando há apenas diferenças apuradas em juízo, mas não pode escudar a inadimplência de parcelas manifestamente devidas e incontroversas (v.g., férias e 13º proporcionais). O parâmetro prático é claro: o que é objetivamente exigível no prazo legal deve ser pago; o que depende de definição judicial não acarreta, por si, mora sancionável.
Do ponto de vista institucional, a segurança jurídica e a eficácia pedagógica da multa — tal como observa Bacchi — dependem de previsibilidade. Isso recomenda, de um lado, a manutenção das teses que se mantêm fiéis ao texto legal; de outro, a revisão crítica das interpretações expansivas que, embora bem-intencionadas, deslocam o Judiciário para um papel normativo que a Constituição reserva ao legislador. Em síntese: proteger, sim; ampliar hipóteses sancionatórias, não.
Referências
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1. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Precedentes vinculantes do TST – Recursos de revista e agravos repetitivos. Brasília, DF: TST, 2024. Disponível em: site. Acesso em: 15 Ago. 2025.
2. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). ADPF 501 – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em 03 ago. 2020. Brasília, DF: STF, 2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br. Acesso em: 15 Ago. 2025.
3. PEREIRA, Alexandre Pimenta Batista. Entre a obrigação simples e o ato complexo: a natureza da multa prevista no parágrafo oitavo do art. 477 da CLT. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 41, n. 163, p. 103-120, jul./set. 2015.
4. POLI, Gustavo Luiz; DINIZ, Ricardo Córdova. Algumas considerações sobre o prazo para pagamento das verbas rescisórias após a Lei 13.467/2017. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v. 84, n. 1, p. 271-285, jan./mar. 2018. Disponível em: site. Acesso em: 1 set. 2025.
5. SILVA, Antônio Álvares da. A multa do artigo 477, § 8º, da CLT. 2. ed. Belo Horizonte: RTM, 1997.
6. BACCHI, Rodolpho Cézar Aquilino. O caráter pedagógico da multa do artigo 477, § 8º, da CLT. Revista de Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 215-236, 2018.
7. Op.Cit
8. Ob. Cit.
9. Op.Cit.
10. Op. Cit.
11. Op. Cit
12. Op. Cit.
13. Op.Cit.