O polêmico cardápio QR Code

O polêmico cardápio QR Code

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A pandemia de Covid-19 trouxe várias mudanças no mundo e antecipou tendências da tecnologia no nosso dia-a-dia. Um grande exemplo disso é a forma de trabalho home Office que muitas empresas e órgãos públicos continuam adotando mesmo depois de a pandemia já ter acabado. Outro exemplo importante foi o desenvolvimento do ensino à distância, que cresceu muito nesses anos se tornando majoritário em algumas instituições e cursos.

Dentre essas evoluções que surgiram na pandemia, uma que se consolidou também foi a adoção do cardápio QR Code. Essa forma de cardápio foi extremamente incentivada no período pandêmico para que as pessoas não compartilhassem objetos que poderiam ser vetores do vírus. O Quick Response Code (código de resposta rápida) ou QR Code é uma versão bidimensional do código de barras capaz de transmitir uma grande variedade de informações através de um scan.1

Ocorre que mesmo depois de passado os efeitos da pandemia, assim como aconteceu com outros avanços desse período, muitos estabelecimentos passaram a adotar esse cardápio como única forma de se atender o consumidor.

Para o comerciante o cardápio QR Code tem várias vantagens, dentre elas a vantagem de não precisar ser reposto por desgaste, de poder ser alterado sem maiores custos e de ser muito mais dinâmico já que as imagens geradas no celular podem conter um número muito maior de informações e efeitos.

Todavia, assim como toda evolução tecnológica, o cardápio QR Code também trouxe alguns problemas. Em primeiro lugar, nem todos os celulares conseguem ler esse tipo de cardápio. Aqueles celulares mais antigos, com baixa tecnologia são incapazes de acessar essa tecnologia.

Outro ponto importante é que para se acessar esse tipo de cardápio, o consumidor necessita de acesso a internet, seja a sua própria, seja a do estabelecimento. Ocorre que no Brasil, uma parcela considerável da população não possui plano de internet paga. Segundos dados do IBGE de 2022,  cerca de 28,2 milhões de brasileiros de 10 anos ou mais de idade que não possuem acesso à internet, sendo 3,6 milhões deles estudantes no ano passado, com os excluídos digitais representando 15,3% da população  nessa faixa etária.2

Além desses problemas de ordem financeira e tecnológica, pode-se apontar também o avanço da população idosa no País. A população com 65 anos ou mais no Brasil representa 10,5% do total em 2022, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).3

Os idosos de forma geral possuem uma maior dificuldade de se adaptar a essas novas tecnologias, causando, de forma indireta uma exclusão digital dessa camada da população. Outro aspecto que pode se levantar contra o uso do cardápio digital é exatamente a necessidade que muitas pessoas sentem atualmente de se desconectar do mundo digital, em alguns momentos do dia, e um desses momentos seria na hora das refeições ou do lazer em bares e restaurantes. O uso do aparelho de celular para acessar o cardápio QR Code romperia esse momento off-line das pessoas.

E quanto ao Código de Defesa do Consumidor, o que poderia ser alegado contra uso do cardápio QR Code?

De início pode-se apontar que é direito básico do consumidor a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações. Ora, o cardápio QR Code, viola frontalmente a igualdade nas contratações conforme já demonstrado alhures.

Também é vedado ao fornecedor, recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes, nos termos do art. 39, II. Também é considerado prática abusiva, prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços, nos termos do inciso IV do mesmo dispositivo.

A oferta do cardápio QR Code como única opção pode se enquadrar também na prática do art. 39, V, ou seja, exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.

Diante dessa polêmica, muitas assembléias dos estados brasileiros começaram a regular o uso desse instrumento.  No Rio de Janeiro, o Projeto de Lei 6.392/22, de autoria do deputado Rodrigo Amorim (PTB), foi aprovado na terça-feira,9, e agora só espera a sanção do governador Cláudio Castro (PL). No Mato Grosso do Sul, o projeto de lei 137/2023, que proíbe cardápios exclusivamente digitais, foi encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) pelo deputado estadual Marcio Fernandes (MDB).No Distrito Federal, um projeto semelhante do deputado Robério Negreiros (PSD) tramita desde o início do ano passado e aguarda parecer da Comissão de Defesa do Consumidor. Em Minas Gerais, existem 2 projetos de lei sobre o tema, o Projeto de Lei n. 385/2023, de autoria do Delegado Christiano Xavier (PSD) e o Projeto de Lei n. 695/2023, de autoria do deputado Sargento Rodrigues, presidente da Comissão de Segurança Pública (PL). Ambos não proíbem o uso do cardápio QR code, mas sim a sua exclusividade. Essa parece ser a opção mais adequada, apesar da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), discordar da imposição.

Segundo o presidente da entidade, Paulo Solmucci, cardápios por QR Code são questão de mercado, não de lei. “Essas leis são a velha e boa mania do Estado de interferir onde não é chamado e nem é preciso”, disse Solmucci. Ele afirma que não se trata do QR Code ser ruim ou não, mas do direito do próprio negócio de tomar a decisão. “Os bares e restaurantes são quem melhor conhecem seus consumidores, entendem seus hábitos e preferências. Por isso, é descabida essa tentativa de impor uma obrigação de ter menus impressos nos restaurantes”, concluiu Solmucci.4

Infelizmente, percebe-se que o Presidente dessa entidade desconhece completamente o direito, e principalmente o direito do consumidor.

Há que se ressaltar que cabe sim ao poder público garantir e estabelecer normas que garantam os direitos dos consumidores no acesso ao mercado de consumo e tais projetos de lei vêem exatamente nessa direção.

Dispõe o art. 4º do CDC que a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.

Ademais, é principio dessa política, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e a implementação de ações governamentais no sentido de proteger efetivamente o consumidor, por iniciativa direta, visando a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Desse modo, os projetos de lei obrigam a oferta do cardápio físico juntamente ao cardápio QR Code cumprem exatamente o que prevê o Código de Defesa do Consumidor.

 

Referências

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1. Com relação à oferta dos preços dos produtos com código de barras semelhante discussão foi travada aqui no Brasil, infelizmente com vitória dos comerciantes: O Decreto nº 5.903/2006 que regulamenta o CDC e a Lei nº 10.962/2004 define aspectos sobre a oferta e as formas de afixação de preços e de produtos para o consumidor. Com relação à oferta dos produtos com código de barras, o STJ já teve entendimento de que o fato de existir código de barras em cada produto não é suficiente para assegurar a todos os consumidores estas informações. “Para atender realmente o que estabelece o Código do Consumidor, além do código de barras e do preço nas prateleiras, devem os supermercados colocar o preço em cada produto.” (MS 6.010 – Primeira Seção – Rel. Min. Garcia Vieira – Dj 06.12.1999). Com o advento da Lei nº 10.962/2004, passou-se a admitir a utilização do código de Barras. É o que está disposto no art. 2: “Art. 2o São admitidas as seguintes formas de afixação de preços em vendas a varejo para o consumidor: I – no comércio em geral, por meio de etiquetas ou similares afixados diretamente nos bens expostos à venda, e em vitrines, mediante divulgação do preço à vista em caracteres legíveis; II – em auto-serviços, supermercados, hipermercados, mercearias ou estabelecimentos comerciais onde o consumidor tenha acesso direto ao produto, sem intervenção do comerciante, mediante a impressão ou afixação do preço do produto na embalagem, ou a afixação de código referencial, ou ainda, com a afixação de código de barras. Parágrafo único. Nos casos de utilização de código referencial ou de barras, o comerciante deverá expor, de forma clara e legível, junto aos itens expostos, informação relativa ao preço à vista do produto, suas características e código.” “Após a vigência da Lei Federal nº 10.962 em 13.10.2004, permite-se aos estabelecimentos comerciais a afixação de preço do produto por meio de código de barras, sendo desnecessária a utilização de etiqueta com preço individual de cada  mercadoria” (REsp nº 688.151/MG – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJU 08.08.2005). Tal regulamentação está prevista no art. 7º do Decreto nº 5.903/06 que assim dispõe: “Art. 7o Na hipótese de utilização do código de barras para apreçamento, os fornecedores deverão disponibilizar, na área de vendas, para consulta de preços pelo consumidor, equipamentos de leitura ótica em perfeito estado de funcionamento. § 1º Os leitores óticos deverão ser indicados por cartazes suspensos que informem a sua localização. § 2º Os leitores óticos deverão ser dispostos na área de vendas, observada a distância máxima de quinze metros entre qualquer produto e a leitora ótica mais próxima. § 3o Para efeito de fiscalização, os fornecedores deverão prestar as informações necessárias aos agentes fiscais mediante disponibilização de croqui da área de vendas, com a identificação clara e precisa da localização dos leitores óticos e a distância que os separa, demonstrando graficamente o cumprimento da distância máxima fixada neste artigo.” (OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo. 9 ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2023. p. 324-326)

2. 28,2 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, diz IBGE. Excluídos digitais são 15,3% da população com 10 anos ou mais; mas proporção de domicílios com banda larga fixa superou a com banda larga móvel pela 1ª vez. Disponível  em:  site. Acesso em 13.10.2023

3. CAMARGO, Marcelo. População idosa no Brasil era de 10,5% em 2022, aponta IBGE. Estudo mostra que percentual era de 7,7% em 2012; levantamento indica alargamento do topo da pirâmide etária brasileira. Disponível em: site. Acesso em: 13.10.2023.

4. Fim do cardápio em QR Code? Estados querem menus impressos em restaurantes. Legislativos de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal têm projetos de lei a favor de cardápios físicos. Disponível em: site. Acesso em: 13.10.2023.

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