O Estado tem sido objeto de estudo há séculos por filósofos tais como Aristóteles, Locke, Montesquieu e Rousseau, os quais desenvolveram teorias sobre como o mesmo deveria regulamentar a vida social. Basicamente, tais filósofos destacam a existência de três funções (também chamada de poderes), independentes, complementares e harmônicos entre si, que devem visar o bem estar dos cidadãos como fim central, pois são esses que, de maneira direta ou através de seus representantes, sustentam a estrutura do Estado.1 Rousseau aborda a existência do “Contrato Social”, onde os homens, por meio de condições apropriadas, abrem mão de parcela de sua liberdade em prol da harmonia coletiva/social e cedem esse poder a uma entidade ou figura reguladora e gerenciadora do tecido social (Estado).2
O Estado brasileiro, como ente organizacional, é formado por três poderes: executivo, legislativo e judiciário, que se equilibram, se complementam e regem setores diferentes do tecido social. A Administração Pública edita normas e regras que passam a ter efetividade prática através do poder de polícia, instituto este que visa a manutenção da ordem pública em relação ao exercício de direitos e atividades no meio social.3 Segundo Marcelo Paulo Wacheleski, o poder de polícia e o exercício desse poder se dá da seguinte maneira:
No âmbito doutrinário, o exercício do Poder de Polícia se realiza a partir de um ciclo que compreende: a) previsão legislativa de restrição à liberdade; b) exigência de coerência entre o exercício da liberdade e a concordância da administração pública; c) imposição aos particulares de sujeição à fiscalização e ao corpo normativo aplicável; d) possibilitar a aplicação de sanções.
Logo, existem normas que devem ser seguidas para que esse poder seja exercido sem excessos e, dentro dos limites do princípio da proporcionalidade, o mesmo realizará a harmonização entre o exercício dos direitos individuais e a tutela do interesse público, dando efetividade ao contrato social acima citado. O poder de polícia está ligado a atuação da Administração Pública no contexto da regulamentação e fiscalização do exercíco de direito individual, que tem, pôr fim, a proteção da coletividade. Nas palavras de Caio Tácito:
o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequando, direitos e liberdades individuais.4
O artigo 78 do Código Tributário Nacional também define o instituto:
poder de polícia é atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. 5
O poder de polícia é dotado de discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade. A coercibilidade permite o poder de coação para que as ordens e medidas sejam aplicadas no caso em concreto, pois o poder de polícia também é imperativo. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira:
(…) Dado que o Poder de Polícia administrativo tem em mira cingir a livre atividade dos particulares, a fim de evitar uma consequência anti-social que dela poderia derivar (…) este pode se encontrar na obrigação de não fazer alguma coisa até que a Administração verifique que a atividade por ele pretendida se realizará segundo padrões legalmente permitidos. 6
No que diz respeito a discricionariedade, Hely Lopes Meirelles esclarece:7
(..) traduz-se na livre escolha, pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público (…).
Neste sentido, há possibilidade de a Administração Pública escolher no caso em concreto a melhor medida a ser aplicada, dentro, claramente, das determinações legais elegíveis, para o exercício mais eficiente do poder de polícia (critério da oportunidade e conveniência). Porém, se existe norma que impõe a obrigatoriedade da prática de tal ato por parte do administrador ou agente público diante de situação específica, este deve ser realizado (a não ser que a norma seja inconstitucional).
Já a auto-executoriedade, se trata da desnecessidade de autorização externa para a prática do ato de poder de polícia por parte da Administração Pública. Assim, via de regra, o ato de poder de polícia pode ser praticado sem a necessidade de se recorrer ao judiciário. Neste sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro leciona:
(…) A auto-executoriedade (que os franceses chamam de executoriedade apenas) é a possibilidade que tem a Administração de, com os próprios meios, pôr em execução as suas decisões, sem precisar recorrer previamente ao Poder Judiciário (…).8
Entretanto, para este fim, deve ser analisada a situação fática e sua urgência. Diante de seus atributos e funções, fica evidente a necessidade da aplicação do princípio da proporcionalidade para o freio de possíveis excessos que poderiam ocorrer na restrição de direitos e liberdades individuais. Para isso ocorre a apreciação dos elementos da (1) adequação, (2) necessidade e (3) proporcionalidade em sentido estrito em relação a medida adotada pelo poder público, bem como o fim desejado e suas consequências. O princípio da proporcionalidade e seus três elementos foi desenvolvido no contexto do direito administrativo e constitucional alemão, sedimentado pela jurisprudência da Suprema Corte Alemã (Alemanha Ocidental), no pós II Guerra Mundial, como uma resposta ao passado nazista, a fim de se evitar autoritarismos como os que ocorreram em tal sistema.
O próprio respeito ao princípio constitucional do devido processo legal, estabelecido no artigo 5º da Carta Magna brasileira, inciso LIV, que dispõe que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, possibilita a abstração do princípio da proporcionalidade, não admitindo a prática de atos administrativos abusivos, ilegais ou desproporcionais. Neste sentido, cabe ressaltar a relação de proximidade entre o principio da proporcionalidade e a tutela dos direitos fundamentais estabelecidos na CF/88.
O princípio da proporcionalidade, apesar de não estar expressamente positivado na Constituição Federal, é abstraído e amplamente adotado desde a promulgação da CF/88 e está presente nas leis que regulamentam a Administração Pública, como, por exemplo, no art. 2º da lei 9.784/99, que rege o processo administrativo em âmbito federal. A proporcionalidade, em sua natureza, visa conter excessos por parte dos agentes que estão exercendo determinado poder, mas também pode funcionar como forma de equilibrar a convivência dos direitos individuais com os direitos difusos e coletivos.9
Dessa forma, o princípio alemão da proporcionalidade demonstra que, por um lado, o exercício de um direito individual não é absoluto, a exemplo do direito a propriedade privada. Por outro lado, visa impedir que a Administração Pública viole direitos individuais sob a falsa premissa da proteção da coletividade (como ocorreu no regime nazista).
No que diz respeito ao exemplo do direito a propriedade privada, a Constituição Federal brasileira estabelece em seu art. 5°, inciso XXII, que a mesma é um direito fundamental garantido a todos. Nos dois próximos incisos do mesmo artigo (XXIII e XXIV) positiva de forma clara que a propriedade privada deve cumprir uma função social e que “a lei estabelecerá o procedimento para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social mediante justa e prévia indenização…”.
Logo, percebe-se que o dispositivo constitucional zela pelo direito individual fundamental (a propriedade privada), garantindo as devidas indenizações e ressarcindo o indivíduo de qualquer prejuízo ou dano material (como ocorre no processo de desapropriação). No entanto, também tutela o interesse difuso/público. O princípio da proporcionalidade atua na mesma linha de raciocínio.
Nesse viés, pode-se afirmar que o principio alemão da proporcionalidade é utilizado para delimitar o poder de polícia, ou seja, estabelecer limites e mecanismos de controle para evitar excessos e eventuais desrespeitos aos direitos e liberdades individuais dos particulares, de forma que também proteja o interesse público. Para isso, são aplicados os três elementos do principio da proporcionalidade, como citados anteriormente: (1) adequação, (2) necessidade e (3) proporcionalidade em sentido estrito. Os mesmos fornecem um modelo para analisar a legitimidade do uso do poder de policia em cada uma das situações, fazendo a ponderação entre o interesse público buscado por esse poder e o limite imposto aos direitos e liberdades individuais.10
A exemplo disso, podem ser citadas as situações que envolvem a manutenção da ordem pública, onde muitas vezes ocorre desproporcionalidade no uso desse poder. O art. 144 da CF/88 disciplina: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Pode-se compreender da leitura do artigo que quando o legislador usa o termo “incolumidade das pessoas”, fica nitído que não deve ocorrer excessos (máxima preservação da integridade das pessoas – dentro do que é possível), fazendo-se uso das medidas repressivas apenas para a manutenção dessa ordem.11
Um outro exemplo para se compreender a aplicação da proporcionalidade: qualquer cidadão tem liberdade para adentrar a um museu público (acesso a cultura). Entretanto, a Administração Pública pode impor determinadas normas para o acesso e permanência (dentro do parâmetro da proporcionalidade), para que as pessoas usufruam desses ambientes sem que haja distúrbios ou comportamentos nocivos. Essas normas, devem estar dentro do “bom-senso”. Porém, caso o indivíduo não se adeque a uma tecnicidade da norma relacionada ao local (como, por exemplo, um aspecto da vestimenta), sem que se configure uma real e grave situação de risco a coletividade (ou aos bons costumes), não se adimitiria o uso da força bruta para retirar o mesmo do local. Diante de tal hipótese, se configuraria uso desproporcional do poder de polícia.
Logo, tendo em vista o abordado, pode-se afirmar que o princípio alemão da proporcionalidade é essencial para estabelecer mecanismos de controle para que o poder de polícia seja exercido de forma responsável e moderada pela Administração Pública, atendendo as suas finalidades e evitando excessos. O referido princípio pode ser utilizado como base para a criação de leis/normas que envolvam a regulamentação ou fiscalização de direitos, bem como para a analise do ato administrativo no caso em concreto. Assim, visa garantir o equilíbrio na harmonização do interesse público e o exercício dos direitos individuais.
Referências
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1. PELICIOLI, Angela Cristina. A atualidade da reflexão sobre a separação dos poderes. Brasília. 2006. Disponível em: Link.
2. VILALBA, Hélio Garone . O contrato social de Jean-Jacques Rousseau: uma análise para além dos conceitos. Marilia. 2013. Disponível em: Link.
3. WACHELESKI, Marcelo Paulo. Bogotá. 2016. Disponível em: Link.
4. Direito administrativo brasileiro, 3.l1- 00. 1975, pág. 103 e segs. e, também, Tácito, Caio. O poder de polícia e seus limites. RDA, 27/1; e Administração e poder de polícia. RDA, 27/1.
5. Código Tributário Nacional. Disponível em: Link. Acesso em 24 maio 2024.
6. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 667.
7. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 14ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 142.
8. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 367.
9. WACHELESKI, Marcelo Paulo. Bogotá. 2016. Disponível em: Link.
10. WACHELESKI, Marcelo Paulo. Bogotá. 2016. Disponível em: Link.
11. PERIM, Guilherme Veloso. Abuso de autoridade: atividade policial e poder de polícia. 2022. Goiânia. Disponível em: Link.