Teoria Geral do Princípio da Proporcionalidade
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, sob um cerne deliberadamente abalado de violações aos Direitos do Homem, floresce na doutrina alemã a proporcionalidade. Constitucionalizado em resposta aos horrores perpetuado pelo regime nazista e seus ideais eugenistas e genocidas, atentaram os constitucionalistas alemães e a Suprema Corte Alemã a utilizar a proporcionalidade com o zelo e a cautela de impedir brechas ao surgimento de um novo regime autoritário. O controle de constitucionalidade agora não somente culmina na verificação da legalidade técnica da medida em questão, mas vai além. A proporcionalidade do conteúdo da medida, com base em critérios bem delineados, passa a ser condição de constitucionalidade e validade da norma ou do ato. Neste sentido:
A capacidade de penetração do juiz, em relação à lei, aumentou, mas certamente balizada por parâmetros. Mas parece-nos legítimo dizer que, por causa do princípio da proporcionalidade, os textos constitucionais é que se “engrandeceram” dentro de um contexto mais amplo e crescente de maior significação das Constituições, de tal forma que as leis disciplinadoras de direitos fundamentais haverão de concretizar mandamentos constitucionais precisamente à luz da dimensão neles cunhada. Possivelmente, a evolução da relação entre o juiz e a lei, que constituiu em que a lei passou a “jugular” menos intensamente a atividade do juiz, deva ser vista como um ambiente e um rumo antecedentes e mesmo necessários à possibilidade de utilização do princípio da proporcionalidade (Netto, 2018, p. 375).
O princípio da proporcionalidade surge com vistas a garantir a tutela de direitos inerentes ao ser humano e barrar excessos intervencionistas do Estado em sua regulamentação ou restrição. É o axioma geral do Estado Democrático de Direito, sem o qual não se faz possível assegurar e compatibilizar o exercício de direitos fundamentais de maneira democrática e harmônica. O Princípio da Proporcionalidade ao que compele sua aplicação, deve ser utilizado sob a ótica de suas três vertentes: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
A adequação analisa o meio a ser tomado no plano fático, realizando o diagnóstico de sua averiguação ao passo em que a medida a ser tomada representa um meio apto a realizar o esperado sob a projeção final do ato (lógica entre “meio e fim”). A adequação (Geeignetheit) possui a incumbência de condicionar a medida tomada pelo Estado ao interesse público, adequando o meio ao fim ao qual se depreende alcançar. Nas palavras de Bonavides:
Com o desígnio de adequar o meio ao fim que se intenta alcançar, faz-se mister, portanto, que “a medida seja suscetível de atingir o objetivo escolhido”, ou, segundo Hans Huber, que mediante seu auxílio se possa alcançar o fim desejado (2016, p. 397).
Pode ser citado como exemplo de violação ao critério da adequação a exigência de curso superior em História para um indivíduo trabalhar como segurança em um museu público, visto que a função do referido profissional será realizar a fiscalização do local e não fornecer informações das peças e instrumentos do local, o que caberia a um guia. Assim, na adequação é preciso haver uma lógica entre “o meio adotado” e o “fim a ser alcançado”.
A necessidade (Erforderlichkeit) requer que uma medida deve ser proporcionalmente limitada a não exceder os limites indispensáveis para sua realização. A medida a ser adotada deve ser estrita e taxativamente necessária ao indispensável para a concretização do fim pretendido. A necessidade visa evitar excessos ou abusos por parte do poder público. Como afirma Bonavides: “A medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja, uma medida para ser admissível tem que ser necessária” (2016, p.397).
Por exemplo, o fechamento imediato de um estabelecimento comercial apenas pelo fato de o alvará de localização e funcionamento estar vencido é medida desnecessária, podendo o problema ser resolvido com uma notificação e a concessão de prazo para a regularização.
A proporcionalidade em sentido estrito envolve a ponderação dos bens jurídicos em conflitos, afim de se evitar o sacrifício de direitos fundamentais de forma a gerar mais danos do que benefícios. Nas palavras de José Alvim Netto:
Um juízo correto sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o fim a ser atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito) (2010, p.143).
Por exemplo: por mais que a preservação do patrimônio público seja de interesse público, não se justificaria o disparo de arma de fogo contra um “pichador” (desarmado). O sacrifício do bem jurídico no caso em concreto (integridade física ou a própria vida) é mais danoso do que o bem jurídico a ser protegido (patrimônio público). Ademais, a condição do patrimônio poderá posteriormente ser restabelecido ao status quo, o que não necessariamente ocorrerá com o “pichador” baleado.
Princípio da Proporcionalidade no contexto do STF
A similitude entre o teor da razoabilidade e da proporcionalidade projeta nos precedentes da Suprema Corte, por muitas vezes, a referenciação errônea dos conceitos principiológicos. A razoabilidade, de raízes anglo-saxônicas, concretiza um ideal evidentemente mais subjetivo em sua forma de análise. Por outro lado, a germânica proporcionalidade possui uma estrutura de aferição e de processamento, com uma escala de sub-requisitos e um rigor axiomático, típico da tradição jurídica alemã, que se perfaz no tripé “adequação, necessidade e proporcionalidade”.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro não se revela o único a proferir tal confusão principiológica. O posicionamento dos dois princípios enquanto sinônimos já fora evidenciado na Suprema Corte dos Estados Unidos, pelo uso da sistemática substantive due process, com conceitos como “proporcionalidade aproximada”, a qual guarda mais íntimas semelhanças com a razoabilidade do que com a proporcionalidade alemã em si.
Por inúmeras vezes, em seus julgamentos, o STF limita a apreciação da proporcionalidade em suas duas premissas iniciais: a necessidade e a adequação. Como herança dos modelos americanos, os julgadores por assimilação associam o ideal de proporcionalidade como sendo aquilo que não extrapola os limites do razoável, reduzindo o porte teleológico da proporcionalidade.
Por meio da análise dos precedentes adotados pelo Supremo Tribunal Federal, manifesto se demonstra o uso do princípio da proporcionalidade enquanto balizador interpretativo para o controle de constitucionalidade de leis e atos administrativos, principalmente no que concerne a proteção dos direitos fundamentais. A proporcionalidade administrada pela Suprema Corte possui grande influência estadunidense, com a chamada substantive due process, ou proporcionalidade aproximada, a qual, como versada anteriormente, guarda maiores semelhanças com os preceitos da razoabilidade do que com o princípio em si. A aplicação germânica da proporcionalidade, com suas três camadas interpretativas, não é vista com tanta frequência no teor dos precedentes, porém, ao realizar uma interpretação mais detalhada dos julgados, é possível inferir que o STF usa a proporcionalidade como critério para a aferição do rigor das normas e seus possíveis excessos, como preceituado pela doutrina alemã.
Um exemplo clássico foi o julgado do tema de repercussão geral no Recurso Extraordinário de número 979.962, o qual versou acerca da pena fixada para o crime de importação de medicamentos sem registro sanitário, do artigo 273 do Código Penal. Foi dedutível, pela análise do julgamento, a utilização da proporcionalidade enquanto mediador do direito à fixação da pena-base e da individualização da pena. Segue abaixo:
Direito constitucional e penal. Recurso extraordinário. Importação de medicamentos sem registro sanitário. Exame de proporcionalidade da pena. Presença de repercussão geral. 1. A decisão recorrida declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do preceito secundário do art. 273 do Código Penal, cuja pena cominada é 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão, para aqueles que importam medicamento sem registro na ANVISA (art. 273, § 1º-B, do CP). 2. O Tribunal de origem afirmou que viola o princípio da proporcionalidade a cominação de pena elevada e idêntica para uma conduta completamente diversa daquela praticada por quem falsifica, corrompe, adultera ou altera produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput, do CP). Em razão disso, indicou que a conduta do § 1º-B, I, do art. 273, do Código Penal, deve ser sancionada com base no preceito secundário do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006. 3. Constituem questões constitucionais relevantes definir (i) se a cominação da pena em abstrato prevista para importação de medicamento sem registro, tipificada no art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal, viola os princípios da proporcionalidade e da ofensividade; e (ii) se é possível utilizar preceito secundário de outro tipo penal para fixação da pena pela importação de medicamento sem registro. (STF – RE: 979962 RS, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 03/08/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 09/08/2018)
Desta forma, o STF julgou inconstitucional por desproporcionalidade a cominação de pena para quem importa medicamento sem registro da ANVISA ao de quem falsifica medicamentos.
No que concerne ao controle judicial repressivo das medidas concebidas no âmbito do processo legislativo, a proporcionalidade salvaguarda estreita relação com o controle de constitucionalidade a ser averiguado pelo magistrado. Como assevera Bonavides:
De último, com a instauração do segundo Estado de Direito, o juiz, ao contrário do legislador, atua por um certo prisma num espaço mais livre, fazendo, como lhe cumpre, o exame e controle de aplicação das normas; espaço aberto em grande parte também – sobretudo em matéria de justiça constitucional – pelo uso das noções de conformidade e compatibilidade. Esta última, deveras aberta e maleável, é por isso mesmo mais apta a inserir, enquanto método interpretativo de apoio, o princípio constitucional da proporcionalidade (2010, p.400).
O princípio da proporcionalidade corrobora para uma melhor análise das peculiaridades da realidade fática. No contexto dos julgados da Suprema Corte, a proporcionalidade confere maior abrangência do direito a ser contemplado e seu enquadramento no texto constitucional, afastando normas ou atos que restrinjam de forma desproporcional os direitos fundamentais.
Conclusão
A caracterização, o procedimento e o uso do princípio da proporcionalidade são de suma importância para o controle de constitucionalidade no sistema judiciário brasileiro. A compreensão das balizas incorporadas no âmbito da proteção dos direitos fundamentais confere à análise da Suprema Corte brasileira o cerne interpretativo imprescindível à fundamentação de seus precedentes.
Sendo corretamente integrados, os subprincípios da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), constituem uma blindagem assecuratória da interpretação fática frente ao texto constitucional, na medida em que possibilitam a proteção dos direitos fundamentais contra normas ou atos excessivos ou abusivos.
Por fim, a “proporcionalidade” consiste no próprio axioma do Estado Democrático de Direito, posto que a concepção originária do mesmo pressupõe a harmonia da realidade jurídica e fática com a tutela e o exercício dos direitos fundamentais.
Referências
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BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, 1996.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2020.
NETTO, José Manoel Arruda. O princípio da proporcionalidade nos quadros da dogmática contemporânea – análise de alguns casos, recentes e relevantes, da jurisprudência brasileira, em que incide tal princípio. Revista de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.
NETTO, José Manoel de Arruda Alvim. Processo e Constituição. Revista Jurídica Eletrônica, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, edição nº 1, dez. 2017/jan. 2018.
STF – RE: 979962 RS, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 03/08/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 09/08/2018