Ao identificarmos o racismo como estratégia de poder, como um recurso de grupos hegemônicos para constituir e ratificar os seus lugares e pactos políticos, constatamos que esses mesmos grupos apresentam a si mesmos como humanos, vidas legítimas, detentores de história e, ao mesmo tempo, capazes de indiciar, a partir da distância de si, grupos subalternizados. Entre os muros erguidos pelo racismo está a constante dessubjetivação de sujeitos negros, que oscila entre apresentações estereotipadas — capazes, inclusive, de articular vieses diretos e indiretos de discriminação — e a impossibilidade de narrar sua própria história, tornando esses sujeitos reféns de narrativas unilaterais e autárquicas, manifestadas pelo pacto da branquitude.
A ostensiva veiculação da execução de Laudemir de Sousa Fernandez, por exemplo, exposto apenas como o “gari”, enquanto ao seu algoz foi dado nome, sobrenome, família, emprego e trajetória, revela a ritualização da violência — uma extensão da letalidade indicada pelo corpo cruelmente tombado — e a redução de uma vida, história e memória ao substantivo que, nesse prisma, apresentado de forma massificada, acelerada e opaca, reduz as chances de reconhecimento. Trata-se de uma operação mordaz do racismo que, de forma intencional, negligencia qualquer possibilidade de humanizar sujeitos negros, pois, afinal, nomear corpos racializados, permitir que eles contem a sua própria história, constrange um projeto de poder que se beneficia de uma ordem de mundo pautada no silenciamento e na banalização da violência.
O ocultamento da humanidade de corpos racializados pode, nessa mesma direção, ser observado pela crueldade que emoldura essa cena. A brutalidade e a perversidade que a tecem revelam os múltiplos processos que tencionam asfixiar a identidade de sujeitos negros. A desproporcionalidade da violência deixa entrever como a raça — interseccionada com outros marcadores político-sociais — negocia os lugares e as hierarquias sociais. Vale lembrar que o executor de Laudemir, após ceifar brutalmente a sua vida, foi preso numa academia, em meio à sua rotina de autocuidado. O desprezo pela vida de Laudemir pode ser observado pela violência material e pela supressão generalizada do seu nome, da sua história e das suas possibilidades.
É importante ratificar que nenhuma agenda antidiscriminatória pode se conformar com a supressão do nome, com a impossibilidade de sujeitos marginalizados contarem a sua própria história e com a articulação das normas sociais que não só executam — simbólica e concretamente — corpos dissidentes, mas, de forma antropofágica, se alimentam dessas mortes para assegurar o seu lugar de centralidade e protagonismo político. Lélia Gonzalez nos alerta sobre a supressão do nome de sujeitos negros indicar um espaço que será preenchido pela perversidade da branquitude, que, enquanto sistema político discriminatório, normaliza a injustiça contra corpos racializados. Que nenhuma pessoa negra seja impedida, em nome da denegação imposta pelo racismo, de afirmar a sua humanidade.