O procedimento da usucapião não é sucedâneo ao inventário

O procedimento da usucapião não é sucedâneo ao inventário

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No âmbito do direito brasileiro, o inventário e a usucapião surgem como temas de grande relevância prática e acadêmica, frequentemente gerando inúmeros debates acerca de suas respectivas aplicações e limites.

De um lado temos o inventário, esse se destina à divisão e transferência de bens do falecido aos seus herdeiros, do outro, não menos importante, temos a usucapião, que representa um importante instrumento de aquisição originária da propriedade por meio da posse mansa, pacífica, prolongada e ininterrupta de um determinado imóvel.

No entanto, para a correta aplicação do direito, é relevante compreender que os dois institutos ora analisados possuem finalidades e naturezas distintas, não devendo ser confundidos ou utilizados como alternativas entre si.

O presente escrito tem como escopo quebrar a ideia equivocada de que a ação de usucapião pode servir como uma alternativa viável ao inventário, em especial para os casos nos quais ela é manejada com a finalidade de elisão fiscal e dos custos procedimentais.

Pois bem, nos termos do art. 1.784 do Código Civil, uma vez aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros, o mesmo Código nos explica que a herança se defere como um todo unitário (Art. 1.791), sendo certo que até o momento da partilha, o direito dos herdeiros no tocante à propriedade e à posse da herança serão indivisíveis, e regular-se-ão pelas normas relativas ao condomínio (Parágrafo Único do art. 1.791).

Para o fim de partilhar os bens, cabe aos herdeiros promoverem a ação judicial de inventário ou, nos casos de concordância mútua e na ausência de incapaz, realizarem, se desejarem, o inventário pela via extrajudicial em um Tabelionato de Notas da confiança dos herdeiros, como sempre assistidos necessariamente por advogado.

Além das custas inerentes ao inventário, não podemos fugir do recolhimento aos cofres estatais do ITCMD, cujas alíquotas são fixadas por cada estado, sendo certo que o não recolhimento acarretará em multas consideráveis aos contribuintes, podendo chegar a 20% do valor do tributo, vejamos um trecho de um acórdão do TJ-SP explicando tais penalidades:

O inventário e arrolamento devem ser requeridos no prazo de sessenta dias contados da abertura da sucessão, sob pena de multa de 10% ou 20% do tributo, a depender do atraso (LE nº 10.705/00, art. 21, I). Já o ITCMD deverá ser pago, na transmissão ‘causa mortis’, em até trinta dias contados da decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar o pagamento, não podendo exceder 180 dias da abertura da sucessão, ressalvada possibilidade de dilação pela autoridade judicial (LE nº 10.705/00, art. 17, ‘caput’ e § 1º); caso o tributo não seja recolhido nos prazos estabelecidos, o débito ficará sujeito a multa de até 20% e juros de mora na forma da lei (LE nº 10.705/00, art. 19 e 20). (TJSP; Remessa Necessária Cível 1013984-94.2023.8.26.0562; Relator (a): Torres de Carvalho; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Público; Foro de Santos – 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 11/01/2024; Data de Registro: 11/01/2024 – trecho extraído da página 3 de 4 do Voto nº AC-25.747/23).

Ocorre que, infelizmente, algumas pessoas, seja por falta de recursos para pagar os custos inerentes ao inventário ou até mesmo diante de uma possível ausência de conhecimento, acabam por não fazê-lo, com isso o tempo vai passando, outros herdeiros vão falecendo, novos inventários vão surgindo, novos fatos gerados igualmente devem ser considerados, surgirão novas multas e juros, logo o procedimento acaba ficando muito mais complexo e custoso.

No entanto, em que pese a situação complexa acima descrita gerada pela omissão dos herdeiros, não podemos pensar que o fato deles terem a posse do imóvel por décadas autoriza, por si só, a ação de usucapião, pelo contrário, o Poder Judiciário vem repelindo tal prática, até porque, em muitos casos, essa opção é para fugir dos custos tributários e procedimentais advindos da omissão dos próprios herdeiros, vejamos:

USUCAPIÃO – Autora que pretende regularizar a titularidade de um imóvel, pela usucapião, com base na posse mansa, pacífica, ininterrupta e sem oposição, por mais de 22 anos – Imóvel que tem como proprietários registrados na matrícula, a mãe e o padrasto da autora – Réus que são seus irmãos e, portanto, coerdeiros do bem – Sentença de extinção do processo, por falta de interesse processual – Manutenção – Autora que herdou fração ideal do imóvel por força da transmissão causa mortis, em decorrência do princípio da saisine (art. 1.784 do Código Civil) – A mera circunstância de os coerdeiros, apesar de citados, não se manifestarem nos autos, pode significar anuência com a transferência exclusiva em nome da autora, a reforçar a hipótese de que a autora pretende, por via oblíqua, regularizar a propriedade, sem a abertura do regular inventário e sem a observância da cadeia registral, eximindo-se, ainda, do correto recolhimento dos tributos inerentes à transmissão imobiliária – Ação de usucapião que não é sucedânea da ação de inventário – Precedentes jurisprudenciais deste e. TJSP – Usucapião, ademais, que é modo de aquisição originária e, no caso, a propriedade da autora é derivada do direito hereditário, sendo necessário, portanto, que seja regularizada por meio da ação correta – Sentença mantida na íntegra – Honorários recursais devidos – RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1001377-73.2018.8.26.0352; Relator (a): Angela Moreno Pacheco de Rezende Lopes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Miguelópolis – 1ª Vara; Data do Julgamento: 25/10/2023; Data de Registro: 25/10/2023).

Vale registrar que erroneamente a usucapião foi escolhida como uma alternativa ao inventário porque não há na mencionada ação a incidência do ITCMD, logo, geralmente, se tenta fugir dos juros e das multas inerentes ao atraso no pagamento do tributo. Outro atrativo está no fato de que não se cogita a cobrança do ITBI na aquisição da propriedade pela usucapião por ela ser originária e não derivada, conforme já restou decidido pelo TJ-SP na AC n. 1020677-73.2022.8.26.0451, DJE: 11/08/2023.

Ninguém aqui contesta a possibilidade de um herdeiro adquirir um bem por usucapião quando, frente ao abandono dos demais, assume a posse do imóvel como se fosse seu, podendo assim pleitear a usucapião conforme estabelecido pelo STJ no REsp nº 1631859/SP.

Contudo, nesse cenário, estamos diante de uma posse exclusiva que não se alinha ao artigo 1.208 do Código Civil e que reflete a intenção de possuir o bem como proprietário, não se tratando de uma alternativa ao inventário visando suprimir custos, mas uma situação jurídica diferente, excepcional e capaz de gerar o direito à usucapião.

Vale deixar registrado que ao se optar pela usucapião apenas para fugir dos custos do inventário, nós não estamos cumprindo com o Princípio da Continuidade Registral, haja vista que com a abertura da sucessão deve-se registrar cronologicamente o inventário e partilha, não sendo prudente modificar a mencionada ordem pelo procedimento da usucapião.

Logo, considerando tudo o que restou estudado no presente artigo, não restam dúvidas de que é falsa a conclusão de que a ação de usucapião será uma substituição ao inventário, pelo contrário, caso ocorra o seu manejo somente para fugir da arrecadação do ITCMD e dos custos inerentes ao inventário e partilha, com certeza o processo não terá êxito, encontrando óbice na robusta jurisprudência paulista, na boa-fé e demais princípios básicos do direito civil e registral.

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