O Processo como Instrumento de Opressão: Violência de Gênero no Direito de Família

O Processo como Instrumento de Opressão: Violência de Gênero no Direito de Família

violência mulher

Não faz muito tempo que as faculdades de Direito ensinavam aos estudantes que o processo judicial deveria ser um instrumento voltado à vitória da parte, sem maiores preocupações com meios alternativos de resolução de conflitos.

Apenas recentemente, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, a mediação e a conciliação passaram a ser incentivadas como métodos de pacificação, inclusive o artigo 6º do diploma legal, veio consagrar o princípio da cooperação, o que reforça essa mudança de paradigma, projetando um sistema processual mais colaborativo e menos beligerante.

Entretanto, a realidade dos tribunais não reflete integralmente esse ideal, ao contrário, observa-se o crescimento da violência de gênero em sua faceta processual, especialmente em ações que versam sobre o direito de família; fenômeno que é denominado violência processual de gênero.

A violência processual de gênero se caracteriza pelo uso abusivo do processo como meio de intimidação, desgaste emocional, financeiro e psicológico sendo a mulher a mais atingida por essa violência, perpetuando as dinâmicas de poder já existentes na relação privada.

Na prática, é comum verificar ex-companheiros ou ex-cônjuges manejando recursos desnecessários, ajuizando demandas infundadas ou protelando incidentes apenas para prolongar o litígio e enfraquecer a resistência da mulher. O processo, que deveria ser via de pacificação social, converte-se, assim, em espaço de revitimização.

As práticas mais recorrentes incluem interposição sucessiva de ações sem fundamento idôneo, apresentação de incidentes protelatórios; manipulação da guarda de filhos como forma de retaliação; exigência de provas desnecessárias, expondo a intimidade da mulher; falsas acusações de alienação parental, uso de estereótipos de gênero ou tentativas de desacreditar a capacidade materna.

Portanto, falar em violência processual de gênero não é apenas discutir um abuso técnico-processual, mas enfrentar mais uma nova roupagem da violência contra a mulher; que enquanto persistir, impedirá que o direito de família cumpra sua função pacificadora e continuará sendo, para muitas mulheres, um novo campo de batalha.

Não há dúvida que essas condutas violam princípios como a boa-fé processual e a dignidade da pessoa humana, comprometendo o próprio acesso à justiça, e ainda que não haja tipificação específica, é possível manejar o ordenamento jurídico vigente, sendo possível a condenação do autor dessa violência em litigância de má-fé, a responsabilidade civil e medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha e assim coibir tais práticas, por exemplo.

O Conselho Nacional de Justiça, atento a essa realidade, edita em 2023 a Resolução 492/2023, estabelecendo o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que estabelece medidas a serem adotadas considerando estereótipos e práticas discriminatórias que possam desequilibrar a relação processual, assegurando um julgamento imparcial e livre de preconceitos. Mas na prática, pouco se verifica o uso desse protocolo, podendo-se afirmar haver certa resistência, inclusive.

A despeito disso, em 2019 o Superior Tribunal de Justiça numa decisão de vanguarda reconhece a conduta sexista de um advogado como ato indenizável, o que representa um avanço em relação a violência processual de gênero, ainda que um avanço lento diante da gravidade dessa questão.

Portanto, constata-se que a violência processual de gênero é, em essência, uma estratégia de controle e poder, e seu combate exige a conjugação de esforços: do Judiciário, que deve aplicar protocolos de gênero e coibir práticas abusivas; inclusive em face de advogados, que não podem utilizar-se de expedientes atentatórios à dignidade da mulher; mas também a magistrados e membros do Ministério Público que demonstrem conduta discriminatória em face das partes que sejam mulheres, e até mesmo em face de advogadas.

A nós, que militamos na área do direito das famílias, e entendemos a importância de associar nosso conhecimento jurídico aos direitos humanos, mais do que em qualquer outra área, cabe sermos os primeiros a combater essa violência, não permitindo nos influenciarmos pelas partes que nos contratam, nem mesmo pelo advogado da parte contrária, tomando todas as medidas judiciais cabíveis no bojo do processo, e fora dele; e o mesmo se dizendo se a violência vier a ser cometido pelo magistrado ou pelo membro do Ministério Público.

É preciso lembrar sempre que a proteção da mulher de todos os tipos de violência que ela está sujeita é dever de todos, e mais ainda dos advogados, que têm relevante papel no sistema jurídico brasileiro.

 

Referências

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SILVA, Leandro Souto da. Violência Vicária, Lawfare de Gênero e Direito das Famílias. link. Data de publicação:26/09/2024.

LUZ, Débora. Violência processual e litigância abusiva: como o uso do Judiciário pode perpetuar a violência contra a mulher. link. Data de publicação 27/06/2023

ANUNCIAÇÃO Débora. Violência contra a mulher: assédio processual tem repercussões graves no Direito das Famílias. ibdfam.org.br/noticias/11375/Violência+contra+a+mulher%3A+assédio+processual+tem+repercussões+graves+no+Direito+das+Famílias. Data de publicação 06/12/2023

CABRAL, Maria Luiza e outra. É preciso falar, já tardiamente, da violência processual de gênero. link. Data de publicação 24/07/2024.

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