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O que é o Childfree e como ele está relacionado ao direito do consumidor?

Sad Child

É cada vez mais comum no nosso meio social a existência de casais que não possuem filhos, alguns por impossibilidade, mas muitos também, por opção. Desde o advento da Constituição Federal em 1988, passaram a ser reconhecidas outras formas de família, diferentes daquela vista por muitos como a forma “tradicional”. O percentual de casais sem filhos subiu de 13,5% para 18,8, em 10 anos, até o ano de 2014. No mesmo período, a participação dos casais com filhos recuou de 54,8% para 44,8%, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). 1

Esta é a nova realidade de muitas famílias brasileiras e do mundo. Diante dessa nova realidade, o mercado de consumo também começa a se adaptar criando novos nichos de mercado que antes não existiam.

Dentro desses movimentos, um assunto bastante polêmico no Brasil e no mundo tem ganhado cada vez mais os holofotes. É o movimento denominando de Childfree (livre de crianças), termo que teria surgido nos anos de 1980 nos Estados Unidos e Canadá.

O objetivo inicial do movimento era unir adultos que se sentiam discriminados por não terem filhos e, por isso, frequentavam estabelecimentos destinados somente a adultos. Era um movimento inclusivo para aqueles que se sentiam deslocados do conceito tradicional de família. Todavia, o childfree passou a ser tratado como um movimento que agrega lugares livres da presença de crianças, no seu sentido mais pejorativo e discriminatório, ou seja, locais onde crianças não entram, não porque haja censura ou outra justificativa, mas, simplesmente, por que não são bem-vindas pelo público que frequenta esses lugares. Sérgio Pardellas, afirma que a desvirtuação do movimento childfree deu-se em grande parte, pelo filósofo alemão Herbert Marcuse, criador do slogan “Make Love, no war”. Segundo o referido autor, seu legado embalou a disseminação do ódio quase visceral, reinante atualmente nas relações pessoais e escancarado pelas redes sociais.

Aqui no Brasil, a prática tornou-se conhecida principalmente pelas mídias sociais, nas quais vários estabelecimentos já divulgaram que não aceitam crianças.  É importante notar que não são somente os restaurantes ou bares estão restringindo a entrada de crianças, muitos hotéis e até companhias aéreas impedem a presença dos pequenos ou criam áreas especiais só para adultos.

Em Março de 2017, um restaurante de São Paulo chegou a publicar no seu Instagram uma foto com os seguintes dizeres: “Aqui seu cão é bem vindo, mas crianças favor amarrá-las ao poste”.

Na Pousada Pedra do Lagarto em Pedra Azul, no Espírito Santo, destino romântico de muitos casais em lua-de-mel, o acesso ao estabelecimento só é permitido aos maiores de 14 anos. 2

Já existem relatos de que algumas companhias aéreas tentaram ou optaram separar crianças de adultos. É o caso de Richard Branson, executivo da CompanVirgin, que certa vez se mostrou simpático à ideia de criar um espaço destinado exclusivamente para os pequenos passageiros. A ideia do britânico é que nenhum adulto teria acesso a esse espaço, exceto babás ou os pais das crianças. A ideia não prosperou na Virgin, mas outras companhias levaram o assunto adiante. 3

A Scoot Airlines, empresa aérea de baixo custo de Singapura, criou um programa chamado “ScootinSilence”. Trata-se de um espaço dentro da aeronave onde menores de 12 anos são proibidos. No sul da Ásia, a Companhia Malásia Airlines chegou a proibir crianças na primeira classe em aviões “superjumbo”, Airbus e Boeing 747. A China Airlines e a Air New Zeland criaram zonas de divisão familiar, onde os assentos se convertem em áreas contidas para crianças enquanto a Eurostar decidiu oferecer treinadores familiares dentro dos trens. 4

A discussão é cada vez mais comum e o tema já chegou inclusive ao Congresso Nacional. Em maio de 2017, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei do deputado licenciado Mário Heringer (PDT-MG) que proíbe estabelecimentos comerciais de vetar o acesso a crianças e adolescentes. Nesse projeto, o deputado argumenta que esse tipo de veto é “abusivo” e expõe clientes a “constrangimento”. Para o relator do projeto, Covatti Filho (PP-RS), porém, “não se trata de um tratamento discriminatório das crianças ou mesmo das famílias, mas da exploração legítima de um nicho de mercado”.

As interpretações sobre o tema são bastante divergentes. Existem aqueles que dizem que esse comportamento é discriminatório e proibido pela Constituição e pelo Código de Defesa do Consumidor, e de outro lado, existem aqueles que defendem a possibilidade dessa proibição com base na livre iniciativa e atendendo a um nicho de mercado cada vez mais comum. 5

Para o IDEC, a prática é considerada ilegal e inconstitucional, pois fere à dignidade da pessoa humana, de acordo com o artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal. Ademais, restringir a entrada de crianças também é uma prática abusiva, conforme artigo 39, IX, do CDC, pois é proibido recusar bens ou serviços diretamente a quem se disponha a adquiri-lo por pronto pagamento. 6

Parte dos especialistas, afirmam que a simples proibição da entrada de crianças é discriminatória uma vez que essa condição é inerente a todos em um determinado período da vida e com base nos preceitos constitucionais supracitados, os estabelecimentos que negam a entrada das crianças estariam praticando uma discriminação proibida pelo texto constitucional.

Mas a proibição da entrada de crianças ou a especialização de estabelecimentos que não aceitam crianças não é necessariamente, a priori, uma discriminação dessa categoria de pessoas.

No mercado de consumo, é cada vez mais comum a especialização em seguimentos que atendam aos interesses dessa nossa sociedade pluralista. Hoje em dia, nos grandes centros urbanos, e até mesmo no interior, vários empresários se especializam em setores da economia, como forma de atrair uma clientela específica e de acordo com o tipo de atividade exercida.

Existem hoje no mercado, setores muito específicos (nichos) para determinados tipos de consumidores. Um nicho de mercado é uma especialização dentro desse mercado onde uma pequena parcela dos clientes e consumidores de um mercado maior provavelmente não estão sendo atendidos pelos fabricantes e fornecedores principais de um determinado produto ou serviço, daí ocorre a especialização para atender uma demanda cada vez mais crescente. Pode-se apontar como exemplo, restaurantes veganos, casas noturnas voltadas ao público LGBTI, festivais gospel, cruzeiros marítimos para idosos, solteiros, estudantes, evangélicos, roqueiros, sertanejos e também para famílias com crianças.

A seleção de público alvo é legítima e uma prática comum de boa gestão e ocorre naturalmente em todos os setores de mercado. O que não se pode permitir é a abusividade dessa prática, e para isso o judiciário pode ser acionado.

Desse modo, é possível se estabelecer alguns critérios para caracterização da abusividade ou não da medida, sem que haja necessariamente uma discriminação ou constrangimento e que se permita o empreendedorismo e a livre iniciativa, valores também previstos na nossa Constituição.

Em primeiro lugar, o estabelecimento que proíba o acesso de crianças deve informar esse aspecto de forma clara e visível, em todas as suas formas de publicidade para se evitar surpresas e constrangimento de famílias que o frequentem ou que tenham intenção de frequentá-lo, já que tal prática não é comum no mercado de consumo e trata-se de uma exceção. O direito básico à informação é o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, art. 4º, I, contratante mais fraco da relação jurídica. 7

Outro critério que pode ser levado em consideração é se no local existem outras opções daquele mesmo serviço. Se o fornecedor é o único prestador daquele serviço, a prática poderia ser discriminatória por violar o art. 39, I, do CDC, já que o consumidor não teria escolha e, desse modo, ficaria sem a prestação do referido serviço. Entretanto, se existem outros prestadores daquele mesmo serviço na região, o consumidor deve escolher aquele que mais se adeque ao seu perfil, inclusive ao dos seus filhos e crianças que os acompanham, pois estabelecimentos que não possuem adequação às crianças podem ser extremamente tediosos para elas e seus pais e pior, perigosos, fazendo com que a experiência de lazer seja extremamente frustrante. Imagine-se por exemplo, um município que possua somente um hotel, ou somente um restaurante, neste caso, a proibição de crianças pode fazer com que a família não tenha onde se hospedar ou almoçar nessa localidade, o que tornaria a prática abusiva.

Também é possível estabelecer a proibição em estabelecimentos que promovam atividades de risco ou inseguras para menores.  Nesses estabelecimentos é natural proibir o acesso de menores a esses locais, pois o risco envolvido nessas atividades é muito alto e a proibição dá-se em defesa do menor. Muitas vezes esses estabelecimentos não estão preparados ou não foram planejados para atividades infantis.

Pode-se também apontar como possível a proibição nos hotéis voltados exclusivamente ao público adulto, com atividades eróticas, como a rede Hedonsim em Cancún e Jamaica, esses estabelecimentos são famosos porque permite-se tudo em suas áreas públicas, inclusive o sexo. Também é muito comum a proibição de entrada de menores em Cassinos ou estabelecimentos que permitem os jogos de azar, apesar dessa prática não ser permitida no Brasil atualmente, ela já foi permitida por aqui e existem vários projetos de retorno dos jogos de azar no nosso país, já que a maioria dos países vizinhos da América Latina permitem tal prática.

Mas além dessas justificativas, várias outras também podem ser apresentadas, como: inadequação do local com animais perigosos ou selvagens, por exemplo, piscinas, cachoeiras, ausência de áreas recreativas, ou seja, inúmeros podem ser os argumentos para se proibir o acesso de crianças aos estabelecimentos e serviços.

Mas os pais não têm porque se preocupar. Hoje, na contramão desse movimento, muitos empresários já perceberam que várias famílias planejam as viagens e as atividades de lazer com base no entretenimento das crianças e um dos itens mais chamativos da maioria dos estabelecimentos são exatamente esses lugares que possuem espaços apropriados e destinados aos pequenos, com atividades recreativas, monitores, parques, e entretenimento. Em uma sociedade plural, e em um país em que cada vez mais casais optam por não terem filhos, a única forma de se atender a todos é permitir que o próprio mercado estabeleça essas regras, e aquelas consideradas abusivas sejam analisadas pelo judiciário.

O que não é possível é estabelecer um critério apriorístico absoluto para todas as situações existentes devido à diversidade de argumentos e justificativas abarcadas.       Ademais, essa proibição pode existir desde que devidamente justificada, inclusive como uma especialização de mercado e seguidos alguns critérios mínimos de razoabilidade informação aos consumidores desses serviços.

Nesse sentido, a adequação entre os meios e os fins almejados são necessários para a análise dos casos que envolvam a proibição do acesso às crianças, bem como a necessidade da medida para aquela situação específica que justifique a restrição.

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Júlio Moraes Oliveira

 

Referências

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1. COSTA, Daiane. Número de casais que decidem não ter filhos aumenta no país. O Globo. 2016. Disponível em: https://glo.bo/3CIM8AE. Acesso em: 24 nov. 2021.

2. STANGE, Paula. Childfree: Hotéis e restaurantes barram crianças no ES. A Gazeta. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3COhkhV. Acesso em: 24 nov. 2021.

3. “O tema também vem causando polêmica do outro lado do Atlântico já não é de hoje. No ano passado, a Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica (ASAE) de Portugal instaurou processos contra os responsáveis de dois hotéis no Algarve, em Alvor e outro em Albufeira, por proibirem o acesso e a permanência de crianças. No site de um destes hotéis, quando alguém tentava marcar uma reserva para um menor de 18 anos, era impedido de o fazer e aparecia o aviso “adults only” (“só para adultos”). Para a ASAR, vedar a entrada e a permanência de crianças é ilegal e contraria o estipulado no Decreto-Lei 39/2008, que trata do regime jurídico de instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos de Portugal. (BARRAR ENTRADA de crianças em estabelecimentos é ilegal, afirma Idec. O Globo. 2017. Disponível em: https://glo.bo/2ZjGOGa. Acesso em: 24 nov. 2021).

4. VENTURA, Ivan. Childfree: um novo e polêmico consumidor. Consumidor Moderno. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3xiv6bw. Acesso em: 24 nov. 2021.

5. É o entendimento do Professor Português Mario Frota: “No meu entender não há nada que impeça uma oferta segmentada no mercado. Porque a oferta é ampla e pode, sem quebra do princípio da igualdade, haver uma diferenciação que atraia determinados universos-alvo e a eles – e só a eles – se destine. Desde que se respeite o princípio fundamental e os limites impostos por lei no que tange a práticas negociais desleais (enganosas e agressivas) e ao mais, uma tal oferta desse tipo não fere a lei. Como diria alguém a propósito do acesso ao direito e à justiça: “a justiça é igual para todos, a todos está aberta, tal como o Hotel Ritz” (is open to all, like the Ritz Hotel). Só que uma esmagadora maioria nem sequer do átrio passa – compara Frota.” (BARRAR ENTRADA de crianças em estabelecimentos é ilegal, afirma Idec. O Globo. 2017. Disponível em: https://glo.bo/2ZjGOGa. Acesso em: 24 nov. 2021).

6. VENTURA, Ivan. Childfree: um novo e polêmico consumidor. Consumidor Moderno. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3xiv6bw. Acesso em: 24 nov. 2021.

7. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo. 4. ed. Revista, atualizada e ampliada. Belo Horizonte: D´Plácido Editora, 2017, p. 81.

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