Baseado em discursos científicos, práticas sociais, reiterações estilizadas e cituacionais, sexo e gênero sempre causaram confusões e distorções entre o que é considerado natureza e cultura. O sexo, até hoje, é entendido por muitas pessoas, como fruto da natureza, enquanto o gênero, como o resultado da cultura e da socialização dos corpos em um determinado local e tempo.
Embora o sexo também tenha se estabelecido e firmado suas amarras a partir de discursos científicos binários e cisheteronormativos, o foco que se pretende conferir a este artigo é sobre o gênero e a forma com que ele é percebido, recebido e tratado pelo Poder Judiciário brasileiro, com ênfase no Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero. Este documento é fruto dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021, para colaborar com a implementação das políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ ns. 254 e 255, de 4 de setembro de 2018, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.
Ainda que de suma importância e bastante atual, logo de início, nota-se que, para o Poder Judiciário, falar de gênero é o mesmo que falar de mulher, feminino, mulheridades, feminidades; logo, o masculino e a masculinidade permanecem em seu standard supremo de “normalidade” regente, não-histórico, não-cultural e, portanto, natural. Falar sobre gênero, colocando o foco apenas em mulheres (cis, diga-se de passagem), é autorizar, para além do empobrecimento do debate, a contínua e profícua manutenção do patriarcado em seu lugar de governança e vigilância sobre os outros corpos, seres e identidades. Para além disso, há se ater ao debate observando a interseccionalidade do gênero com questões de raça, origem, orientação sexual, classe, e outros marcadores que conformam e formam os corpos e seres viventes em sociedade.
Críticas à parte, porque ainda precisamos de muitos debates sobre as questões que surgem no entorno das masculinidades e de outras identidades e identificações de gênero para além da cisgeneridade, para a elaboração do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que foi publicado em 2021, contou-se com a participação de todos os segmentos do poder judiciário nacional – estadual, federal, trabalhista, militar e eleitoral, e os trabalhos foram concluídos utilizando como referência o Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género, concebido pelo Estado do México, após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O referido documento é, ainda, mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, contemplado pelo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5, da Agenda 2030 da ONU, com a qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, inclusive porque ele atende à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), após ter condenado o Brasil por não investigar e julgar adequadamente crimes contra mulheres.1
Ele traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos; o que orienta, inclusive, a recomendação do CNJ nº 128/2022, no que tange à atuação do Poder Judiciário em todas as suas esferas.
Entendido e recebido por muitos e muitas como uma espécie de guia, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero vem sendo usado (ou melhor, deveria estar sendo usado) como fundamento e reflexão em diversos processos que tramitam nos vários ramos da Justiça, de forma a dirimir assimetrias socioculturais e estabelecer uma equidade substancial e material entre os gêneros.
Ou seja, a igualdade formal, tão aclamada em especial em nosso texto constitucional, mostrou-se insuficiente para contemplar a realidade e vivência dos jurisdicionados, sob a perspectiva de seu caráter meramente programático, persuasivo, instrutório e norteador. A “aplicação” da igualdade formal, quando da resolução de diversas lides que são levadas diariamente ao Poder Judiciário, requer muito mais do que a dogmática fantasiosa lecionada nos bancos universitários e repetida em linhas jamais lidas de petições que inundam os gabinetes em tribunais e varas de primeira instância – ela requer o comprometimento multilateral de toda e qualquer pessoa que esteja atrelada a um processo que se encontra tramitando.
Conforme propõe o próprio Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero, que acabou sendo condensado em cartilhas compartilhadas por vários instâncias e setores do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas, OAB e outras instituições sociais, para além – muito além – de se buscar a aplicação do direito ao caso em concreto, há ser promovida uma real aproximação entre todos os integrantes de uma lide judicial. Espera-se que, muito mais que apenas ouvir, declarar, imputar, julgar, sejam todos e todas verdadeiramente escutados. Requer-se, em especial do/da julgador/julgadora, uma análise profunda do caso que lhe está sendo levado, de forma com que verifique se ele abrange questões que se refiram a discriminação, repetição de estereótipos, assimetrias ou qualquer outra questão afeta a gênero.
Analisar uma questão sob uma perspectiva de gênero requer, de quem está julgando a lide, um olhar para além da relação fechada, entre partes, bipartite e privada: há ser feita uma análise dos fatos, das relações neles estabelecida e no impacto social e geral da sentença ou ordem a ser proferida ou imposta. O olhar para uma relação jurídica privada, levando-se em consideração as suas perspectivas histórico-socioculturais pede que a sua solução transcenda as linhas frias, inócuas e já ultrapassadas das leis e passe a refletir sobre vidas, existência, resistência e dignidade; que busque identificar, interseccionalmente, os impactos diferenciados e arraigados nas divisões binárias dos padrões sociais, que acabam por atingir, ofender, menosprezar, afetar as mulheres frente aos homens.
Se compreendido, pulverizado e aplicado, o Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero se apresenta, não como a solução última e única, mas como o início da concretização da igualdade material entre sujeitos e sujeitas de direito; seja frente ao Poder Judiciário, seja no seio das suas relações particulares.
Referências
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1. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil no caso do assassinato de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em 1998. A decisão foi publicada no dia 24 de novembro de 2021 e foi a primeira vez que o Estado brasileiro é condenado internacionalmente pelo crime de feminicídio e que a Corte IDH proferiu uma decisão que trata de forma categórica da questão de gênero. Na sentença, o Brasil foi responsabilizado pela discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero, pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima e pela aplicação indevida da imunidade parlamentar. A íntegra da decisão se encontra disponível em: https://bit.ly/3knuqzC. Acesso em 09 fev. 2023.