O Transhumanismo e os Neurodireitos estão correlacionados ao uso da Inteligência Artificial (I.A). Assim primeiro é preciso entender o conceito e a funcionalidade da I.A., para depois adentrar ao tema central deste artigo, analisando as preocupações éticas que surgem a partir da possível manipulação neurológica dos seres humanos, bem como o suposto surgimento de novas espécies racionais.
De forma simples, é possível afirmar que a I.A. consiste na busca de produzir robôs ou programas de computadores, que possam exercer funções relacionadas ao assessoramento e/ou tomada de decisões, de forma semelhante a atividade cognitiva (capacidade de raciocínio) humana. Por muito tempo prevaleceu a ideia de que a máquina poderia substituir o homem apenas nos trabalhos mecânicos. Porém, a I.A. tem demonstrado que é possível ser utilizada em atividade cognitiva. Para isso são desenvolvidos algoritmos e programas digitais para que a I.A. possa desempenhar tal função.
Muito se discute se a I.A. poderá desenvolver a aptidão de realizar algo semelhante ao que entre os seres humanos chamamos de “juízo de valor” ou “consciência”. No geral, os estudiosos do assunto afirmam que a I.A. poderá ser desenvolvida para de forma autônoma e bem sofisticada, realizar a eleição do que considera ser a melhor decisão dentro do “cálculo/avaliação de probabilidades”. Para exemplificar: os seres humanos quando estão diante da opção “A” ou “B”, fazem uma escolha baseada em seu “juízo de valor” ou “consciência”.1 No caso da I.A. o equivalente a conduta humana seria a análise de “riscos e benefícios” ou “probabilidades de benefícios e malefícios” na escolha entre a opção “A” ou “B”, elegendo a que, em tese, gere no seu consequente mais benefícios do que malefícios.
No caso do Transhumanismo o foco é diferente. O mesmo pretende minimizar ou até mesmo eliminar as limitações humanas, por meio do uso da I.A., da Biotecnologia e da Neurociência. Entre essas limitações podem ser citadas: deficiências físicas, doenças degenerativas, perda de membros em decorrência de amputação e até mesmo acabar com o envelhecimento e a morte por causas naturais, podendo dar origem a uma nova espécie dotada de racionalidade.
O “Manifesto Transumanista” diz nos seus primeiros dois artigos:
- A humanidade deve ser profundamente afetada pela ciência e tecnologia no futuro. Nós imaginamos a possibilidade de ampliar o potencial humano ao superar o envelhecimento, deficiências cognitivas, sofrimento involuntário e nosso confinamento no planeta Terra.
- Nós acreditamos que o potencial da humanidade continua em grande parte ainda não alcançado. Existem possíveis cenários que levam a humanidade à condições maravilhosas e extremamente interessantes.2
O referido “Manifesto” também reconhece que o uso da tecnologia traz sérios riscos (art. 3º), que a adoção de políticas neste contexto deve ser orientada pelo respeito a autonomia, aos direitos individuais e a dignidade das pessoas (art. 6º), e defendem o bem-estar de toda senciência,3 incluindo seres humanos, animais e futuras formas de vidas cuja inteligência seja formada ou alterada por meios artificiais (art.7º). Esses dispositivos encontram correspondência com vários princípios da Bioética e do Biodireito, como, por exemplo: o respeito a autonomia do paciente e do participante da pesquisa, a necessidade do consentimento informado, não-maleficência, beneficência, prevenção a danos e avaliação de riscos, bem como a tutela da dignidade da pessoa humana.
De acordo com o descrito acima no “Manifesto”, é possível concluir que os transhumanistas trabalham seriamente com a hipótese de modificação da estrutura física (inclusive neurológica) da espécie humana, dando origens a novas espécies no planeta dotadas de racionalidade. A princípio, a ideia seria alcançar novos patamares de desenvolvimento e minimizar (ou eliminar) nossas limitações que nos trazem frustrações e sofrimento (como a dor de ver um ente querido adoecer e morrer).
No entanto, aqui surgem algumas preocupações éticas referentes a proposta transhumanista: será que não retornaríamos ao “eugenismo” do início do século XX que culminou na tentativa da eliminação de seres considerados inferiores, como ocorreu, por exemplo, no regime nazista?4 Como seria o suposto convívio entre estas diferentes espécies racionais, as quais estariam em patamares diferentes de força física e intelectualidade? As “espécies superiores” trabalhariam em parceria ou buscariam dominar e/ou eliminar as “inferiores”?
As questões acima levantadas são de máxima relevância, pois em tese, as pessoas e países mais ricos e desenvolvidos iriam se “transumanizar” mais rápido do que as pessoas e países mais pobres e subdesenvolvidos. Se hoje a humanidade já se divide em classes sociais, havendo inúmeros preconceitos quanto a isso, como seria a vida com espécies distintas convivendo em diferentes estágios de desenvolvimento tecnológico? Surgiria a divisão de “classes neurológicas”, com a concessão diferenciada de privilégios?
Digno de nota que a História mostra que, regra geral, quando houve choque de civilizações em estágios diferentes de desenvolvimento tecnológico, a mais desenvolvida escravizou ou exterminou a menos desenvolvida (como no caso da colonização espanhola e portuguesa na chamada “América Latina”). De fato, se isto ocorreu entre seres da mesma espécie (afinal, espanhóis, portugueses e índios eram todos humanos), o mesmo poderia ocorrer entre espécies distintas (transhumanos x humanos).
Outra questão ética preocupante diz respeito a privacidade e autonomia mental, intelectual ou neurológica dos seres humanos. Caso realmente seja possível manipular as conexões neurais de forma a intervir na cognição (pensamentos) dos seres humanos, surge a preocupação do domínio mental. Poderiam alguns dos pesquisadores, empresas ou governos responsáveis por tais pesquisas tentarem manipular ou até mesmo dominar a mente das pessoas? No momento, isto pode parecer apenas uma ficção científica ou cinematográfica. Mas o fato é que já há cientistas e juristas que encaram tais possibilidades como viáveis, solicitando a adoção de normas para regulamentar e impor limites a estas pesquisas.
Neste contexto surgem os Neurodireitos, os quais visam proteger o ser humano na esfera cognitiva e neural. Os cinco Neurodireitos básicos a serem protegidos, que se tem propagado em diversos sites especializados e artigos jurídicos são: (1) a conservação da identidade pessoal, (2) a preservação do livre-arbítrio, (3) a proteção da privacidade mental, (4) o acesso equitativo a melhorias na saúde e capacidade mental e (5) a proteção contra os “vieses” ou preconceitos que podem resultar das pesquisas e tratamentos neurais.5 No ano de 2021, o Chile foi o primeiro país do mundo a realizar uma emenda constitucional para incluir os Neurodireitos como direitos fundamentais.6
Assim sendo, o campo da I.A, do Transhumanismo e dos Neurodireitos necessitam de maiores estudos. Não podem passar despercebidos pelas faculdades de Direito e demais instituições jurídicas. É necessário também um estudo mais aprofundado para analisar a necessidade de sua regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro.
Referências
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1. O ser humano ao realizar tal juízo de valor também avalia benefícios e malefícios, porém a sua tomada de decisão pode privilegiar o “benefício” individual (autogratificação) ou social, quando os mesmos entram em choque.
2. UNIVERSO RACIONALISTA, Declaração Transhumanista, disponível em: link.
3. Este termo se refere a todos os seres que tem consciência de sua existência e, no momento, é geralmente aplicado a humanos e animais.
4. Digno de nota que o próprio Holocausto perpetuado pelo regime nazista, em boa parte se fundamentou nas teorias raciais eugenistas da época.
5. PIVA, Silva. “Neurodireitos: proteger a mente humana das novas tecnologias”, disponível em: link.