O que os Tribunais diriam no caso da T07E01 de Black Mirror

O que os Tribunais diriam no caso da T07E01 de Black Mirror

Black-Mirror

Como um bom aficionado por tecnologia e séries, não poderia deixar de abordar o primeiro episódio da mais recente temporada (sétima, para ser mais preciso) de Black Mirror. Aliás, não é a primeira vez que comento a série na minha coluna.

Para contextualizar (e lá vai spoiler, portanto, caso não tenha assistido, salve para ler depois): no episódio “Pessoas comuns”, Amanda é uma professora que desmaia durante uma aula. Ela é socorrida e, quando seu marido Mike chega ao hospital, descobre que ela está entre a vida e a morte. Amanda permanece desacordada e é diagnosticada com um tumor inoperável no cérebro. Cabe ao marido, para salvá-la, decidir se aceita contratar uma startup, a Rivermind, que implantará no cérebro de Amanda um dispositivo que, conectado à nuvem, permitirá o restabelecimento das funções cerebrais. A instalação é gratuita e o esposo assume apenas a responsabilidade de efetuar o pagamento de um serviço de assinatura, no valor de 300 dólares mensais.

Feito o implante, Amanda se recupera e volta a viver sua vida junto ao seu esposo. A princípio, além do pagamento da assinatura, a única mudança significativa em sua rotina é limitação geográfica decorrente da cobertura restrita a algumas cidades e a necessidade de dormir por um período determinado de tempo, pois é nesse intervalo que as informações da nuvem são atualizadas.

Apesar da promessa de ampliação da base geográfica em breve, quando realmente disponibilizada, Amanda tem a surpresa de que só conseguiria utilizar os serviços em cidades mais distantes mediante adesão a um plano superior e, logicamente, ao pagamento de mensalidade maior.

Como se não bastasse, Mike e Amanda descobrem que, durante uma das atualizações do sistema implantado, a startup passou a veicular anúncios a terceiros por meio da fala de Amanda. Em um dia, enquanto lecionava para crianças, Amanda começa a falar textos publicitários, sem sequer perceber. Logicamente, isso causa problemas em seu trabalho e, ao procurar a representante da Rivermind, o casal descobre que a remoção das propagandas dependeria do upgrade de plano.

Outras situações ocorrem durante o episódio, sempre com imposição da necessidade de pagamentos adicionais para o desbloqueio de novas funções do implante.

Esse episódio me fez refletir sobre duas situações que já vivemos. A primeira delas diz respeito aos planos de saúde, tão procurados em razão do sucateamento da saúde pública decorrente da má gestão estatal (para dizer o mínimo).

Há, aqui, uma espécie de coculpabilidade entre operadoras de plano de saúde, que desprezam o direito do consumidor e a ética empresarial, e as próprias autoridades públicas que, nas poucas vezes em que agem, não conseguem ser efetivas.

Embora o episódio leve a situação ao extremo, o que os usuários de plano de saúde vivenciam é semelhante: constantes limitações dos serviços, ofertas não cumpridas, aumentos irrazoáveis de preço e tudo o que resta ao usuário é trabalhar mais para custear (duplamente) o serviço (pois pagamos também impostos que deveriam ser empregados na saúde pública, mas acabam custeando viagens de luxo ao rei e seus amigos).

Outra situação análoga, acompanhada recentemente, foi a conduta da Amazon ao inserir propagandas em seu plano de streaming. Diferentemente da Netflix, que criou uma nova categoria de plano mais acessível, concedendo ao usuário a escolha entre manter o plano sem propagandas ou fazer downgrade para um plano mais barato, mas com anúncios, a Amazon simplesmente passou a inserir propagandas para todos os usuários, mantendo o mesmo preço de antes. Ou então ofereceu a alternativa de o usuário pagar mais 10 reais para removê-las.

Contra essa alteração unilateral na prestação e cobrança dos serviços da Amazon Prime Vídeo, foi ajuizada ação civil pública pelo Ministério Público de Goiás, com tutela de urgência deferida para garantir que os usuários que já haviam assinado o plano sem anúncios tivessem os serviços prestados conforme contratado, ou seja, sem veiculação de anúncios.

Ainda que em sede de cognição sumária, o Juízo da 21ª Vara Cível da Comarca de Goiânia afirmou que:

A inserção de propagandas que interrompem os filmes durante sua exibição configura alteração unilateral das condições do contrato, prática expressamente vedada pelo art. 51, XIII, do CDC, que considera nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que “autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração”.

E ainda:

Ao condicionar o serviço sem interrupções publicitárias ao pagamento de parcela adicional de R$ 10,00 (dez reais), a requerida incorre, em tese, na prática abusiva conhecida como “venda casada”, vedada pelo art. 39, I, do CDC, que proíbe o fornecedor de “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço”.

A decisão que deferiu a tutela de urgência também foi fundamentada na violação ao dever de transparência e ao princípio da informação, vício no serviço, desequilíbrio contratual e nulidade da cláusula que previa que a continuidade do consumidor na plataforma implicaria consentimento com a alteração.

Assim, podemos concluir que a situação narrada no episódio, embora levada ao extremo, não se afasta tanto da realidade que já vivenciamos. O que Black Mirror nos mostra deixou de ser sobre o futuro e passou a ser sobre o presente.

Não há dúvidas, porém, de que o ordenamento jurídico não permitiria conduta como a da Rivermind no episódio. Ainda que as operadoras de plano de saúde consigam perpetuar práticas abusivas com estabilidade, uma conduta como a da startup dificilmente seria admitida pelos Tribunais.

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