O Que Pode Um Corpo Negro?

O Que Pode Um Corpo Negro?

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Pensar as condições pelas quais um corpo é produzido, lido e incutido nas dinâmicas de relacionalidade nos permite considerar que a sua realidade é, de forma expressiva, político-social. Ao investigarmos o que pode um corpo racializado, nos colocamos entre as questões ontológicasque precisam  ser tensionadas por perspectivas que descentralizam a compreensão sobre o ser dos paradigmas modernos de clivagem e de hierarquia e as insurgências éticas que só podem emergir no desafio de desestabilizar a moralidade fundada em princípios, asfixiantes e banalizadores das vidas publicizadas como dissidentes. A raça, enquanto tecnologia de poder, aciona corpos nos circuitos de afirmação das identidades e, ao mesmo tempo, na desidratação das vidas que, marcadas pela subalternidade produzida pelas lógicas discriminatórias, não podem ser enlutadas. Assim, é possível dizer que o corpo escapa às prerrogativas naturais e que ele se localiza, ou melhor, é posicionado — pela articulação de dispositivos de poder — como uma vida ou como uma presença precarizada. Segundo Pimenta Tomás (2021), a raça opera como a produção da falta, do não-ser.  Logo, ela justifica que uma presença, diante da marcação e da violência racista, se torne uma humanidade perdida. A raça produz a falta e, de modo sistêmico, banaliza a força hostil empreendida contra corpos significados como “os outros”.

Para Fanon (2020) a raça funciona como força comparativa. Ela atua enquanto uma dinâmica que promove, por meio da circulação de discursos supremacistas e injuriosos, uma oposição radical entre a humanidade (vinculada à brancura e a outros dispositivos de regulação dos espaços políticos, sociais, culturais, econômicos, estéticos e epistêmicos) e a desumanidade acoplada as corporeidades cindidas dos pactos de reciprocidade. Lemos, nesses termos, que o corpo, enquanto componente político-social, é significado, ao escapar dos contratos raciais  e dos seus gerenciamentos hegemônicos, pela deterioração da diferença. Em Audre Lorde (2020) reconhecemos que a diferença foi deturpada, em nome das políticas coloniais. Essa gestão de terror se beneficiou da composição de mundo onde a diferença e a desigualdade foram apresentadas como sinônimos. Aqui, há uma importância no resgate positivo, ético e insubmisso, da diferença enquanto instrumento anticolonial. Somente no escopo da política de hierarquia e de subordinação dos corpos lidos como dissidentes, a presença, a possibilidade e o movimento são vistos como um problema. Apenas num contexto onde a norma se beneficia do apagamento generalizado de identidades que a constrange, a diferença será subordinada.

Ao pensarmos o que pode um corpo, devemos nos ater aos modos pelos quais pensamos as possibilidades ou não possibilidades desse mesmo corpo. Logo, antes de compreendermos as avenidas pelas quais esse corpo pode transitar é preciso investigar e criticar as razões pelas quais determinadas corporalidades são impedidas, antes mesmo de ir, de serem significadas como vidas. É preciso frisar que, ao desabilitar os regimes político-culturais que se aportam no racismo, corpos negros subvertem a lógica, afirmam, de forma inegociável, a sua vida e dignidade e, por fim, abatem os projetos coloniais, hostis e necropolíticos que, como sabemos, precisam ser descontinuados, por todos/as/es nós. Assim, entendemos que corpos negros podem — entre muitas coisas —, à distância dos registros coloniais, subverter eticamente dinâmicas normativas fincadas na imoralidade racista.

 

Referências

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FANON, Frantz. Pele negras, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; prefácio de Grada Kilomba; posfácio de Deivison Faustino. São Paulo: Ubu, editora, 2020.

LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

PIMENTA, Tomás. Modernidade, raça e desumanização. Modernidade raça e desumanização. In: A psicanálise e o eclipse decolonial. Organizado por Andréa Máris Campos Guerra; Rodrigo Goes Lima. São Paulo: n-1 edições, 2021.

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