Desde o Humanismo,1 a humanidade, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média, passou a valorizar o ser humano e a condição humana acima de tudo. Esse período de grandes transformações foi responsável pela ruptura com o teocentrismo cedendo lugar ao antropocentrismo.
Desde então, o homem avança na ciência e na tecnologia em busca da melhoria de qualidade de vida, alargando seu conhecimento científico, seja descobrindo a cura de doenças, seja em busca de novas tecnologias que auxiliam em áreas diversas, do trabalho ao entretenimento.
Hoje nos encontramos na 4ª Revolução Industrial, momento em que o mercado mundial de eletrônicos é invadido todos os dias por invenções, TV Smart, aspiradores robôs, babás eletrônicas, geladeiras inteligentes, Alexa… Mas sem dúvida, dentre todas as invenções voltadas à família, a máquina fotográfica digital ocupa lugar de destaque.
A Máquina Digital, criada por Steve Sasson, nos laboratórios da Kodak, rapidamente ganhou o público que ansiava pela oportunidade de registrar todos os momentos felizes da vida, o significado de fotografar os primeiros passos do bebê, filmar a primeira papinha sólida, as primeiras palavras balbuciadas propiciava a sensação de que congelávamos os momentos felizes e, assim, eles durariam para sempre.
Tudo isso porque, no passado, para registrar os momentos em imagens fotográficas era um processo muito custoso e moroso, era necessário comprar o filme com antecedência ao evento, colocar na máquina, tirar as fotos (sem a segurança de que sairiam nítidas), cuidadosamente rebobinar o filme, retirar, levar ao laboratório para revelar o filme, após a revelação, as fotos aproveitáveis teriam de ser armazenadas adequadamente para manter a integridade e a qualidade do papel fotográfico.
De tal maneira, a maioria das famílias registrava em fotos apenas eventos muito especiais, como casamentos, nascimentos, batizados, formaturas e alguns poucos aniversários.
Agora que quase todos têm a sua máquina fotográfica de alta resolução nas mãos no aparelho celular, cuja função tem se ampliado cada vez mais e, no que se refere a fotos, possibilita melhorar a qualidade das imagens, colocando efeitos e filtros especiais, criamos o hábito de registrar momentos cotidianos, a exemplo de um encontro casual de amigos, uma refeição deliciosa, um pet engraçadinho, um sorriso e todos aqueles gestos engraçadinhos que captam a evolução das ações dos bebês.
Vivemos o período da chamada geração Z ou pós-millenial, geração esta que já nasce sob holofotes do flash das câmeras do celular dos pais coruja2 que, fascinados com a obra, fruto de seu DNA, revivendo o mito de narciso moderno, passaram a compartilhar inúmeras fotos de crianças e adolescentes nas redes sociais, para além de exibir-se, confirmarem o quão seus pequenos são lindos, por isso ganham muitos “likes” e comentários nas postagens e, dependendo do engajamento da postagem, a foto é capaz de até mesmo patrocinar a primeira infância desses pequenos monarcas sem império.
Assim, o excesso do compartilhamento de imagens e vídeos, chamado por Steven Leckart,3 Shareting, termo que no inglês significa “Compartilhamento”, surge como uma grande preocupação, para Steven, shareting significa:
prática de mães e pais da geração do milênio, que compartilham uma infinidade de informações de todas as formas – texto, vídeo e fotos de seus filhos na infinidade de plataformas de mídia social disponíveis. Os pais involuntariamente comprometem a privacidade online de seus filhos compartilhando demais e documentando momentos dos primeiros dias de uma criança na internet, momentos que podem ser embaraçosos/embaraçosos para a criança que não tem voz no que está sendo compartilhado.4
Esta prática quase irresistível e habitual dos pais em compartilhar a imagem de seus filhos na Internet, com o fim de obter a gratificação e adulação experimentada neste compartilhamento, acarreta consequências negativas em médio e em longo prazo para as crianças e adolescentes protagonistas das fotos.
As consequências a curto prazo vão desde o “sequestro digital” de dados, que se refere a um fenômeno no qual os cybercriminosos usam fotos de menores, passam por pais dessas crianças e as usam para cometer crimes na Internet. Em recente estudo do Barclays Digital Eagles,5 esse fenômeno de compartilhamento de imagens, segundo estimativas do estudo, tem movimentado na deep web aproximadamente 670 milhões de libras em fraudes.
Além da indústria da pedofilia, que movimenta mais de 20 milhões de dólares por ano6 e se utiliza também das fotos compartilhas pelos pais nas redes sociais, no Brasil, por exemplo, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em pesquisa sobre a pornografia infantil no país, informa que, na Internet, foram encontrados mais de 17 mil horas de material gravado de crianças entre 3 e 17 anos.7
O Shareting também acarreta consequências emocionais às crianças e aos adolescentes, segundo Leah Plunkett8 – professora na Harvard University -, o impacto emocional influencia no desenvolvimento de ansiedade na mais tenra idade, na baixa autoestima, necessidade extrema de aceitação de outras pessoas, distúrbios alimentares e do sono, riscos do cyberbullying etc.
Os pais são capazes de dar a vida pelos filhos, e disso ninguém duvida, mas não percebem que, ao compartilhar em excesso a imagem desses pequenos, acabam por desprotegê-los, por devassar a sua intimidade, sua privacidade.
O legislador imbuído na proteção desses sujeitos, ao prescrever o poder parental no art.1.630 do Código Civil, colocou as crianças e adolescentes sob a sujeição dos seus pais, mas a irresponsabilidade parental está levando muitos pais a abusarem desse poder parental.
Isso porque a criança e o adolescente que, sem consentir e, às vezes, até mesmo sem discernir sobre o que se passa, têm a privacidade usurpada, seja por vaidade dos pais ou mesmo necessidade de aceitação social. Com isso, são colocados em situações que podem levar a riscos psicológicos e emocionais no desenvolvimento da personalidade e na formação da autoestima. Afinal, desde o nascimento, têm sua imagem disponibilizada para espectadores vorazes, sem rosto e muitos sem compaixão.
Os pais têm o dever de zelar pela proteção e privacidade da vida de seus filhos, conforme prescreve a redação dos artigos 17 e 18 da Lei 8.069/19909 (ECA) e, caso o compartilhamento de imagens venha gerar prejuízos a seus filhos, na formação emocional, na imagem, por violação da intimidade, da honra e da vida privada, devido ao shareting, esses pais estão sujeitos a ressarcir danos morais e matérias ocasionados a essas crianças e adolescentes nos termos do inciso X do artigo 5 da Constituição Federal, justamente pela violação de direitos.
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Referências
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1. O Humanismo foi um movimento intelectual iniciado na Itália no século XV com o Renascimento e difundido pela Europa, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média. O teocentrismo (Deus como centro de tudo) cede lugar ao antropocentrismo, passando o homem a ser o centro de interesse. Disponível em: https://bit.ly/39k7cEQ. Acesso em: 11 jun. 2022.
2. Designa pais muito zelosos, preocupados com os seus filhos e que os protege em todas as situações. A expressão surgiu com a fábula “A Coruja e a Águia”, do escritor francês La Fontaine, também reescrita por Monteiro Lobato e outros autores.
3. Disponível em: https://bit.ly/3MQP1V8. Acesso em: 11 mar. 2022.
4. Disponível em: https://bit.ly/3NPa1wT. Acesso em: 11 mar. 2022.
5. Disponível em: https://bit.ly/3xkwfQ0.
6. Disponível em: https://bit.ly/2ug4zfo. Acesso em: 11 mar. 2022.
7. Disponível em: https://bit.ly/3NRsN6J. Acesso em: 11 mar. 2022.
8. Disponível em: https://bit.ly/3b19b1s. Acesso em: 11 mar. 2022.
9. Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.