O silêncio: arma e escudo

O silêncio: arma e escudo

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Recentemente a Empresa de Telefonia AlmavivA do Brasil foi responsável por um concurso de fantasias no carnaval. Fomos pegos/as de surpresa ao constatar que uma das fantasias que avançava nas finais e com mais votos no Instagram era, na verdade, uma ode ao racismo na forma de Black face — uma das técnicas de apagamento mais sofisticadas contra a população negra.

O Black face incide contra a dignidade de sujeitos negros por corroborar uma lógica de coisificação radical das suas subjetividades, reflexo do aniquilamento ontológico que fundamenta e pavimenta as avenidas de destruição que a raça e o racismo forjam, na modernidade e na contemporaneidade. A destruição do ser foi um dos marcos fundamentais do processo de colonização dos corpos. A fratura ontológica sustentou a nova forma de escravização e, mais, tornou justificável todo aniquilamento dos corpos subordinados à colonização.

A concepção moderna do homem delimita certa zona à qual alguns pertencem. Pertencem ao ser aquilo que é visto, pois o ser é o que ilumina aquilo que aparece. Fora dessa zona, encontra-se uma “zona do não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida”. A raça é um modo antropológico, próprio à modernidade, de alimentar a zona do ser, e o racismo é uma prática estrutural de exclusão de certos indivíduos da zona do ser. Como produto do colonialismo, o princípio da raça opera como uma lógica de cercamento que instaura uma distinção entre o mundo e o “além-mundo”. O ser, a branquitude, se desenha dentro da “fronteira que nossos exércitos controlam” — ou da área de que toma conta a segurança privada. (PIMENTA, 2021, p. 47).

O Black face alimenta um imaginário no qual sujeitos negros podem ser desumanizados e “usados” como fantasia. A perversidade que se esconde atrás dessa “brincadeira” destila uma das mais violentas formas de manipulação das identidades negras, a fim de que elas sejam sistematicamente aniquiladas. Aos que afirmam ser “mimimi” ou “vitimismo”, apenas digo que não se trata de uma questão de opinião e, mais, que não avaliar os fenômenos de violência com a profundidade e seriedade que eles exigem só reflete, no fim, uma adesão às políticas de continuidade que, inclusive, não poupam nenhum corpo lido e publicizado como dissidente.

Sobre o concurso, me espanta o silêncio da empresa diante das acusações de racismo. Ademais, esse espanto permite pensar que o silêncio se torna, para os sistemas de violação de sujeitos, um instrumento eficaz de continuidade, uma vez que blinda historicamente sujeitos e grupos sociais que se logram do esfacelamento de corpos dissidentes. O silêncio é imposto aos sujeitos dizimados pelas políticas de aniquilamento como o racismo, por exemplo e, ao mesmo tempo, serve de escudo para grupos hegemônicos que fazem questão de contar com o esquecimento como arma que permite a manutenção de suas violações que, nesse prisma, são naturalizadas. Assim como nos ensina Aimé Césaire (2020), não há perdão para os que se pretendem civilizadores, mas que constroem marcos civilizatórios à custa da destruição generalizada de corpos, culturas e cosmoexperiências subalternizadas, a fim de que mantenha segura a norma e o seu interesse imoral. O silêncio revela a dissimulação moral dos que, embora, por vezes, se anunciem como aliados, não desfazem os elos e os pactos com estruturas hegemônicas e coloniais.

 

Referências

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CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020.

PIMENTA, Tomás. Modernidade, raça e desumanização. In: GUERRA, Andréa Máris Campos; GOES E LIMA, Rodrigo (org.). A psicanálise em eclipse decolonial. São Paulo: n-1 edições, 2021. p. 45-60.

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