Uma racionalidade se constitui por camadas ou dimensões, a exemplo daquela conceitual, ideológica, relacional, da governabilidade e dos afetos, fundamentos que determinam os vínculos sociopolíticos, a dinâmica, os modos de circulação social e até o fenômeno de “empobrecimento do subjetivo” (termo problematizado por Rubens Casara em sua obra “Bolsonaro: o mito e o sintoma”). Essa “redução do subjetivo ” afasta o pensamento genuíno, o posicionamento livre e a crítica natural (advinda da própria visão de mundo do sujeito).
A assimilação da lógica neoliberal influencia não somente os modos de agir. Ela adultera, principalmente, suas visões de mundo, revelando um projeto de sociedade baseado na desigualdade consentida, talvez fosse mais preciso defini-la como ‘desigualdade meritória’, induzida pela manipulação de sentidos da realidade.
Os discursos de ódio, a dificuldade de interpretar um texto, o desaparecimento das metáforas, a incapacidade de perceber os deslocamentos de sentido, a incompreensão das ironias, a divulgação de notícias falsas (ou manipuladas) e a desconsideração dos valores democráticos são fenômenos que podem ser explicados a partir de uma causa: o empobrecimento subjetivo. (Casara, 2020, local. 99)
Toda a racionalidade tem um aparato conceitual ainda que a aplicação desses conceitos seja viesada (viés neoliberal). O ponto central, nesta análise, é a sua apropriação para mobilizar e manipular anseios, sofrimentos, crenças, expectativas gatilhos emocionais, especialmente, valores.
A razão neoliberal traz como um dos conceitos fundantes a liberdade individual (na prática, liberdade-utilidade, liberdade conveniente), todavia, esse valor é apropriado para sustentar pautas de interesses empresariais e justificar, por exemplo, a flexibilização das normas trabalhistas, o empreendedorismo de sobrevivência (que dá ensejo a uma exploração em cadeia), a terceirização sem limites, as contratações intermitentes e a uberização das relações de trabalho.
Perceber essas camadas é essencial para entender a engrenagem neoliberal e acessar as crenças que alimentam as pautas de interesse e condutas ditas “apropriadas” à lógica de mercado, mais que isso, compreender o organicismo politicamente funcional que caracteriza a extrema direita.
Lição n.1: Razão não é sinônimo de bom senso ou “humanidade”.
Lição n.2: Em alusão à gravura Francisco de Goya nomeada pelo artista como “O sono da razão produz monstros”, a razão também produz monstros e catástrofes. A razão neoliberal mantêm-se acordada e produzindo eficazmente seus efeitos.
Casara (p.19, 2020) argumenta que
Por vezes, as criaturas perigosas e o horror surgem, justamente, do excesso de razão, como demonstra a experiência nazista. E isso só é possível porque existe uma relação necessária (e condicionante) entre o poder e a racionalidade.
Por essa lógica, o “capital”, ente personificado que concentra os interesses de mercado, forma um exército de militantes que advoga nos tribunais das redes sociais pautas “antiestado”, mesmo após a experiência da pandemia. Essa mesma militância, formada em sua grande maioria por trabalhadores(as), defende a desregulamentação das relações de trabalho sob o argumento de uma prospecção que prevê a geração mais emprego. Ah! A culpa do desemprego é da CLT!
A racionalidade configura a janela pela qual o sujeito acessa, interpreta e interage o mundo. É nesse cenário de lutas e indignidades , por exemplo, que precisamos reconhecer e ressaltar a importância da justiça do trabalho, cuja relevância tem sido tão esvaziada aos olhos de quem dela mais precisa.
A degradação das condições de trabalho advém dessa conformação iníqua e desumana, que acentua a dessimetria de forças presentes nas relações de emprego e em algumas relações de trabalho.
O imaginário do(a) trabalhador(a) que aceita um trabalho degradante tem a crença de que a miséria absoluta está a um passo da irresignação e da violência repressiva, que também é simbólica.
Nesse contexto, a miséria passa a ser, então, escalonada ou organizada em níveis. De fato, a coerção simbólica da classe trabalhadora salta os olhos.
Nesse passo, o sofrimento decorrente da “humilhação pelo trabalho” é ressignificado e tratado como merecimento ou ausência de mérito. Essa premissa meritocrática além de negar as desigualdades sociais e o lugar desse sujeito oprimido no mundo, impõe a dor da culpa e da desesperança, uma vez que dada as condições restritas, quase sempre degradantes, não há muito o que fazer. Sim, a racionalidade neoliberal é também a razão do adoecimento ocupacional!
Jessé Souza adverte que,
Os sinais dos novos tempos estão no cotidiano: emprego mal pago, trabalho precário, culto aos ricos e ódio aos pobres, corte dos gastos sociais (remédios deixam de ser custeados pelo Estado), desorientação e falta crônica de esperança. Um dos principais sinais do quadro desolador de ser humilhado o tempo todo é, precisamente, a fuga na fantasia e na imaginação, que é o destino dos que se sentem abandonados. Quando a realidade se torna insuportável, a fuga na fantasia é inevitável para tornar a vida minimamente palatável. (Souza, 2024, Local. 189)
Lição n.3: A razão neoliberal mercadoriza a existência.
O sujeito neoliberal emerge pressionado por essa estrutura mercantilizada, marcada pela espetacularização do horror, pelo extremismo, pelo despotismo presente em algumas relações de trabalho, pela ultraexposição, pelo narcisismo acentuado, pelo autoritarismo, enfim, pela deturpação ou desaparecimento de valores caros à humanidade bem como dos valores democráticos.
O perfil ideal desse sujeito, forjado por essa racionalidade neoliberal, é individualista, competitivo (competitividade pela sobrevivência), territorial, hiperdedicado à “empresa”, acrítico, docilizado, inerte, desmobilizado politicamente, indiferente à dor do outro e adestrado para encampar interesses econômicos que não são seus e pautas liberais (ainda que operem a seu desfavor).
Bem, há perfis de transição e outras características são observadas, a exemplo da hiperprodutividade (condição para manutenção do vínculo) e da redução do espaço da vida privada.
essa direção de pensamento, Ricardo Antunes destaca que
(…) estamos presenciando cada vez mais o fim da separação entre o tempo de vida no trabalho e fora do trabalho. Cada vez mais os trabalhos se estendem para a totalidade do dia e invadem a noite, seja no espaço produtivo, seja no reprodutivo (e na complexa imbricação entre ambos), ampliando ainda mais a disponibilidade integral para o trabalho, seja na empresa, seja no espaço doméstico.” (Antunes, 2023, p.32)
Quanto mais o poder econômico se aproxima daquele político percebemos o retrocesso civilizatório, dando ensejo a violência, a exclusão, ao adoecimento, a acidentes de trabalho, ao suicídio e a morte da subjetividade genuína (não forjada).
Referências
____________________
ANTUNES, Ricardo et al (Org.) Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023.
CASARA, Rubens R. R. Bolsonaro: o mito e o sintoma. São Paulo: Editora Contracorente, 2020.
CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária,2021.
SOUZA, Jessé. O pobre de direita: a vingança dos bastardos. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2024.