Comportamentos inautênticos na internet
Já faz algum tempo que a internet é envolta em discussões sobre o uso de “robôs” em redes sociais. Vários algoritmos são desenvolvidos para garantir postagens sobre assuntos predeterminados, assim como interações em publicações sobre aquele determinado tema.
Após fechar a compra do Twitter, o bilionário controverso Elon Musk chegou a tentar voltar atrás da compra da participação societária, sob fundamento de que os números de usuários da rede social estavam extremamente inflados pela presença de contas fakes, o que acabaria influenciando na apuração do valor da operação.
Embora ainda não tenhamos gestado uma solução adequada para o problema, o debate é sadio e merece especial atenção.
O que ainda não chegou ao debate público, também devemos trazer aos holofotes um tema extremamente relevante: fake streaming.
Fake Stream
As plataformas digitais normalmente não são um exemplo de transparência acerca dos parâmetros utilizados para entregar os conteúdos gerados por seus usuários. Ainda assim, independente do peso atribuído pelos diferentes algoritmos, é inquestionável que é extremamente importante o engajamento da comunidade com os conteúdos gerados pelos criadores.
Também chamado de Streamings artificiais, o fake stream consiste na utilização de contas em plataformas de aplicação, sem um correspondente titular real, para o incremento inautêntico de métricas de conteúdos audiovisuais.
Pessoas naturais e jurídicas utilizam-se de inúmeros dispositivos informáticos, como smartphones, para gerar engajamento inautêntico a quem paga por esses serviços.
Objetivo da conduta
Na era de amplo acesso a diversas espécies distintas de streaming, o criador de conteúdo tem cada vez mais dificuldade em prender a atenção dos usuários.
Nos dias atuais, as estatísticas de engajamento apresentam especial importância para o criador de conteúdo. A monetização daquela criação acaba diretamente vinculada aos números obtidos e, por isso, alguns criadores optam por comprar engajamento ao invés de conquistá-lo.
Se pensarmos unicamente pela perspectiva do criador de conteúdo lícito, que apenas utiliza o engajamento inautêntico para ganhar certo status naquela aplicação, já nos deparamos com comportamento reprovável que gera um desbalanceamento relacional em detrimento dos demais criadores.
Ocorre que os efeitos podem ser ainda mais nefastos, quando utilizado o fake stream para gerar credibilidade a um perfil que é utilizado para a prática de golpes nos demais usuários, como por exemplo a venda de produtos inexistentes.
Esse tipo de comportamento é constantemente encontrado em redes sociais, pois na sociedade atual o número de seguidores, visualizações, likes e outras métricas apresentam um papel semelhante a um score de confiança: quem tem mais, é mais confiável.
Além disso, também é comumente empregadas ferramentas assim para a obtenção de lucro indevido, seja para reunir os requisitos para admissão nos programas de monetização das plataformas, seja para majorar sua participação em fundos de royalties. Sobre esse ponto, especialistas estimam que entre 3 e 4% do fluxo global é ilegítimo, o que causa um impacto de aproximadamente 300 milhões de dólares1 .
Diversos players do mercado, no entanto, já voltaram sua atenção para esse tipo de atuação. A aplicação Spotify, por exemplo, já trouxe a público a sua preocupação e, ainda, indicou que a adoção de streamings artificiais é uma violação aos seus termos de uso2 .
Boa-fé objetiva
A utilização de serviços de fake streaming é uma evidente violação de boa-fé objetiva por parte do contratante daquele fluxo de engajamento artificial.
O Código Civil trouxe, desde a sua edição, três diretrizes que regem sua aplicação: operabilidade, socialidade e eticidade. No contexto da eticidade, a boa-fé objetiva vem insculpida no artigo 422 do Código Civil como uma cláusula geral de exigibilidade implícita nos contratos.
A boa-fé objetiva é aquela em que é observado o padrão de conduta do homem médio. Não se admite que a utilização de ferramentas para criação de números falsos no conteúdo criado possa ser considerada comum e aceitável ao brasileiro médio.
Podemos identificar três funções para a boa-fé objetiva no direito contratual: interpretativa, limitativa e constitutiva de deveres colaterais. Ao nos depararmos com um contrato celebrado entre um produtor de conteúdo digital e uma aplicação de streaming, a função constitutiva de deveres anexos demanda a observância da transparência e da lealdade.
A lealdade não se restringe aos contratantes, embora o uso de fake streaming também seja uma violação a boa-fé entre a aplicação e o criador de conteúdo. Também deve ser resguardado o dever de lealdade entre os diversos criadores de conteúdo que utilizam aquela determinada aplicação.
Não restam dúvidas de que tais ferramentas acabam por gerar um desequilíbrio entre aquele que a utiliza e os demais criadores de conteúdo, tornando desleal a concorrência.
Ademais, também cria delicada situação para a plataforma de aplicação digital que não raras vezes pauta o pagamento aos criadores de conteúdo nas métricas que foram artificialmente infladas.
Nesta toada, podemos concluir pela inevitável identificação da violação contratual ao nos depararmos com a utilização de ferramentas e serviços de fake stream, por ser uma conduta que afronta a boa-fé objetiva.
Referências
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1. LEIGHTE, Elias. Fake Streams Could Be Costing Artists $300 Milion a Year. Disponível em: link. Acesso em 16 de agosto de 2023.
2. Spotify For Artists. Artificial streamings and paid 3rd-party servisse that garantee streams. Disponível em: link. Acesso em 16 de agosto de 2023.