O Uso da Taxa Selic como Índice de Correção Monetária e Juros Legais nos Negócios Jurídicos Civis sem Previsão Expressa em Escritura Pública

O Uso da Taxa Selic como Índice de Correção Monetária e Juros Legais nos Negócios Jurídicos Civis sem Previsão Expressa em Escritura Pública

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1. Introdução

A ausência de cláusula expressa sobre correção monetária e juros em negócios jurídicos civis tem se revelado uma questão de relevância prática e crescente debate nos tribunais brasileiros. Em especial, quando há suspensão de parte do pagamento de um contrato de compra e venda em razão de condição futura e incerta – como a conclusão de um georreferenciamento – torna-se indispensável discutir a preservação do equilíbrio econômico e a vedação do enriquecimento sem causa.

Em casos como o do processo nº 4000139-66.2025.8.26.0531, em trâmite na Comarca de Santa Adélia/SP, sob a responsabilidade dos advogados Dra. Luísa Monteiro Ravazi e Dr. João Vitor Rossi, verifica-se que a escritura pública de compra e venda de imóveis rurais foi lavrada sem a previsão de índice de correção monetária ou juros legais sobre o saldo devedor, cujo pagamento ficou condicionado à ocorrência de evento futuro e de data incerta. Dessa forma, o comprador manteve o capital em sua posse, enquanto o valor devido às vendedoras vem sendo corroído pela inflação.

Diante desse cenário, o Poder Judiciário é chamado a intervir, não para alterar o conteúdo do negócio jurídico, mas para assegurar sua justiça e equilíbrio, aplicando o índice legal de atualização previsto no art. 406 do Código Civil, qual seja, a taxa SELIC.

2. A necessidade de atualização monetária e o princípio do equilíbrio contratual

A correção monetária não representa acréscimo patrimonial, mas apenas recomposição do poder de compra da moeda, conforme reconhece o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Trata-se de instrumento de justiça contratual, necessário para impedir que a inflação corroa o valor real das obrigações.

2. A correção monetária não representa qualquer acréscimo, mas simples recomposição do valor da moeda corroído pelo processo inflacionário. (STJ, REsp n. 1.191.868/MG, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 15/6/2010, DJe de 22/6/2010).

Negar a atualização monetária em uma obrigação civil de pagamento postergado equivale a legitimar o empobrecimento de uma parte e o enriquecimento ilícito da outra, em flagrante violação ao art. 884 do Código Civil:

“Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

No caso concreto, a ausência de previsão contratual sobre atualização não pode servir como justificativa para deixar o crédito inerte. O valor do dinheiro, ao longo do tempo, sofre desvalorização natural, e a manutenção de um saldo de R$ 675.000,00 sem correção implica uma transferência injusta de riqueza, pois o comprador poderá usar do capital e acumular riquezas, enquanto que as vendedoras nada recebem, perdendo o valor real da moeda com o passar dos dias.

No mais, o art. 317 do Código Civil autoriza o juiz a corrigir prestações desproporcionais decorrentes de eventos imprevisíveis, a fim de assegurar o valor real da obrigação. Assim, a intervenção judicial nesse tipo de situação não afronta o princípio da autonomia da vontade, mas o preserva dentro dos limites da boa-fé e da função social do contrato (arts. 421 e 422 do CC).

3. A taxa SELIC como índice legal de correção e juros

O art. 406 do Código Civil de 2002 estabelece que, quando os juros moratórios não forem convencionados, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça interpretou esse dispositivo no sentido de que a taxa SELIC é o índice aplicável às dívidas civis, por englobar tanto correção monetária quanto juros de mora, evitando a cumulação indevida de encargos (bis in idem).

Em emblemático precedente, a Corte Especial do STJ, no EREsp 727.842/SP (Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 20/11/2008), fixou a tese de que:

“2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)

Mais recentemente, o REsp 2.195.944/RS (Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 23/6/2025) reafirmou que, na ausência de previsão contratual, a SELIC deve ser aplicada como índice único de atualização monetária e juros, por refletir o custo real do dinheiro no tempo e evitar distorções econômicas.

Assim, nos negócios jurídicos civis que não dispõem expressamente sobre o índice de correção, a SELIC assume função dupla, dispensando a aplicação cumulativa de IPCA ou outro índice de correção com juros de 1% ao mês, que implicaria duplicidade de atualização.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, alinhado ao entendimento do STJ, tem aplicado o mesmo raciocínio em suas decisões mais recentes:

“Correção monetária e juros moratórios. Ausência de previsão contratual. Irrelevância. Incidência da SELIC. Inteligência do artigo 406 do Código Civil.” (TJSP, Apelação Cível nº 1010922-98.2023.8.26.0286, Rel. Des. Walter Exner, j. 24/01/2025)

Por isso, considerando os precedentes, não há dúvidas de que a correção monetária e os juros legais, quando não estipulados, devem seguir a Taxa SELIC.

4. A função econômica da SELIC e a vedação ao enriquecimento sem causa

A taxa SELIC, além de ser o índice adotado pela Fazenda Nacional, é o principal instrumento macroeconômico de política monetária no Brasil, refletindo o custo real do capital e a variação do poder de compra da moeda.

Aplicá-la às obrigações civis em que não há estipulação contratual é medida que confere segurança jurídica e uniformidade de critérios, impedindo que credores e devedores sejam tratados de maneira desigual em função da omissão de cláusulas que deveriam existir para preservar o equilíbrio contratual.

A omissão, nesse caso, não pode gerar vantagem indevida ao devedor. Se o comprador permanece com o capital em mãos sem qualquer encargo, enquanto o vendedor vê o valor nominal de seu crédito desvalorizar-se mês a mês, há evidente enriquecimento sem causa, vedado pelo ordenamento jurídico (art. 884 do CC).

Em síntese, não se pode conceber um negócio jurídico suspenso, ainda que sob condição futura, sem a devida atualização monetária, sob pena de transformar a incerteza temporal em instrumento de especulação e desequilíbrio econômico.

5. Conclusão

A aplicação da taxa SELIC como índice de correção e juros legais nos negócios jurídicos civis que não dispõem expressamente sobre atualização monetária é medida que harmoniza o sistema jurídico e garante a efetividade dos princípios contratuais da boa-fé, da equidade e da função social do contrato.

A ausência de correção não apenas afronta o equilíbrio econômico-financeiro da avença, mas viola o dever de justiça contratual, permitindo que o tempo — e a inflação — se convertam em vantagem indevida para o devedor.

O Poder Judiciário, ao aplicar a SELIC nesses casos, não cria obrigação nova, mas repara a omissão contratual com base no índice legal previsto pelo art. 406 do Código Civil, restabelecendo o valor real da obrigação e impedindo o enriquecimento ilícito.

Assim, a taxa SELIC se consolida como o parâmetro jurídico e econômico mais adequado para a atualização de dívidas civis não convencionadas, servindo à justiça contratual, à proteção da moeda e à segurança das relações negociais no Brasil.

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