Os Fundamentos Jurídicos em ‘O Advogado do Diabo’: Uma Análise Ético-Legal

Os Fundamentos Jurídicos em ‘O Advogado do Diabo’: Uma Análise Ético-Legal

Equilíbrio - (Imagem gerada por IA Gemini (versão 1.5 Pro) a partir da ideia central do texto. 16/07/2025

Imagem gerada por IA Gemini (versão 1.5 Pro) a partir da ideia central do texto. 16/07/2025

 

1. INTRODUÇÃO

O Advogado do Diabo (1997), filme dirigido por Taylor Hackford, mescla elementos de thriller psicológico e alegoria moral a um drama jurídico. A narrativa acompanha Kevin Lomax (Keanu Reeves), um talentoso advogado de defesa com histórico impecável, recrutado por John Milton (Al Pacino), sócio de um prestigioso escritório em Nova York que, progressivamente, revela-se como a encarnação do Diabo. Sob uma perspectiva jurídica, o filme oferece uma crítica contundente à relação entre ética profissional e ambição desmedida, explorando dilemas como a defesa de clientes moralmente questionáveis e os limites da manipulação processual .

A obra funciona como metáfora do sistema jurídico contemporâneo, onde a técnica frequentemente se sobrepõe à justiça substantiva.. Esta crítca analisa três eixos centrais: (1) os conflitos entre deontologia jurídica e pragmatismo profissional; (2) a culpabilidade como conceito manipulável no processo penal; e (3) a representação alegórica do tribunal como espaço de corrupção espiritual.

 

2. ÉTICA PROFISSIONAL E OS LIMITES DA ADVOCACIA DE DEFESA

O filme inicia com um caso paradigmático: Lomax obtém a absolvição de um professor acusado de abuso sexual mediante a desestabilização emocional da vítima durante o interrogatório. A cena ilustra o dilema entre lealdade ao cliente (prevista no Código de Ética da OAB) e justiça materia. A estratégia de Lomax, ainda que tecnicamente válida, evidencia como o formalismo processual pode ser instrumentalizado para perpetuar injustiças, fenômeno real discutido por Streck (2017) em sua crítica ao “positivismo dogmático”

A sedução de Milton sobre Lomax reflete um problema estrutural da advocacia corporativa: a pressão por resultados a qualquer custo. O escritório satânico opera como analogia aos grandes escritórios onde, como observa Susskind (2023), “a métrica de sucesso deixa de ser a justiça para tornar-se o lucro”. A transformação de Kevin em um “monstro forense” ecoa alertas históricos sobre a banalização do mal no exercício profissional, tema explorado por Arendt (1963) em Eichmann em Jerusalém.

 

3. CULPABILIDADE E A FABRICAÇÃO DA INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL

A figura de Milton como “defensor dos pecadores” subverte a noção teológica do Diabo como acusador, aproximando-o do papel do advogado criminal que, nas palavras de Jakobs (1997), “não defende o crime, mas o direito à defesa”. Essa dualidade é exemplificada no caso do bilionário acusado de assassinato, onde Milton não nega a culpa de seu cliente, mas explora falhas probatórias – estratégia que, no mundo real, sustenta debates sobre impunidade em sistemas adversarialistas.

O julgamento simbólico de Lomax no clímax do filme introduz uma reflexão sobre responsabilidade subjetiva do operador do Direito. Ao contrário do modelo weberiano de neutralidade axiológica, o filme sugere que a escolha por defender o indefensável implica em cumplicidade moral – tese alinhada com as críticas de Wolkmer (2021) à “desumanização técnica do Direito”

4. O TRIBUNAL COMO ALEGORIA: JUSTIÇA HUMANA VS. JUSTIÇA DIVINA

A arquitetura gótica do escritório de Milton, reminiscente de tribunais medievais, contrasta com a frieza do tribunal real onde Lomax atua. Essa dicotomia representa o abismo entre justiça como valor transcendental (associada ao divino) e justiça como procedimento (passível de corrupção).  A fala de Milton – “Deus é um espectador. Ele nunca entra em ação” – sintetiza a crítica à passividade do sistema frente a manobras processuais.

A redenção final de Lomax, que rejeita Milton ao custo de sua carreira, resgata a ideia kantiana de que a ética deve ser um fim em si mesma. Contudo, o filme deixa em aberto se tal gesto teria eficácia real em um sistema onde, como aponta Bourdieu (1986), o “capital jurídico” pertence aos que dominam suas regras ocultas.

 

5. CONCLUSÃO: O PREÇO DA VITÓRIA E A CONSCIÊNCIA COMO ÚLTIMO TRIBUNAL

O Advogado do Diabo expõe a crise de legitimidade do Direito quando este se divorcia de sua função social. Como alerta Warat (2004), “o formalismo jurídico pode tornar-se a máscara nobre da barbárie”. O filme, ao humanizar o Diabo como o melhor dos advogados, nos força a questionar: em um mundo onde a lei é habilmente manipulável, resta à consciência individual o papel de último bastião ético?

 

Referências

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ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BOURDIEU, Pierre. A Força do Direito. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2007.

JAKOBS, Günther. *Direito Penal do Inimigo*. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.

KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MENDES, Aluísio. Ética Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 112-115.

STRECK, Lênio. “Verdade e Consenso”. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 89: “A justiça substantiva exige superação do legalismo cego”

STRECK, op. cit., p. 134.

SUSSKIND, Richard. The Future of Law. Oxford: OUP, 2023. p. 77

WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004

WOLKMER, Antonio. Introdução Crítica ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2021.

ZAFFARONI, Eugenio. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

 

Notas

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Sobre ética na advocacia, ver: CONSELHO FEDERAL DA OAB. Código de Ética e Disciplina. Art. 2º: “O advogado não faltará ao dever de lealdade para com o cliente, mas não poderá transigir com a honra, a dignidade e a independência profissionais”.

 

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